quinta-feira, 27 de agosto de 2015

SOLITUDE


Recluso nos meus sonhos
quieto no meu canto
vendo a vida pela janela
a chuva rala lá fora assola
meus pensamentos devaneios

ouço gritos silenciosos
ecoando de minha mente
solitude e imagens
de ritos do ocidente
refúgio dos solitários

meus livros na estante
cantam em meus ouvidos
a cada palavra que leio
em frente decifro os signos
me encanto com a sombra
de meus dedos

Gótica interpretação do mundo
a cidade é lúgubre
armadilhas se enfileiram
nas esquinas na madrugada
não escapamos dos olhos 
que nos fitam!

Desejos são mortais
Não há mais sentido 
em procurar prazeres enlatados
a culpa só aumenta
a cada passo que se alivia

Permaneço atento e calado
a escrita é minha mania
se faz cair em dedilhados
criando alguma harmonia 
para acalmar tempos tempestuosos

Me exercito em não olhar para trás  
por mais de alguns segundos
como um poema inacabado
que devemos continuar
vejo a vida de uma redoma, 
hoje muito mais lúcido

E por hora é só isso que tenho a dizer...

Igor Motta

2015

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

VOCÊ EM MIM

Tudo em você é poesia
Teu amor é música
Teus olhos iluminam os meus
e tua boca saliva a minha

Tua graça é tímida
Teu sorriso contagia
O teu corpo me vicia
E tua nudez me veste

Sua voz acaricia
A minha pele na sua
a mais perfeita
simetria!

Igor Motta
2015

sábado, 15 de agosto de 2015

RIMBAUD E JIM MORRISON OS POETAS REBELDES - WALLACE FOWLIE (DICA DE LIVRO)


Em 1968, o fundador e vocalista da banda de rock The Doors, Jim Morrison, escreveu para Wallace Fowlie, estudioso da literatura francesa e professor da Duke University, Morrison agradecia a Fowlie pela tradução inglesa da obra completa de Rimbaud. Ele precisava da tradução, dizia, porque "não leio tão bem o francês... Sou cantor de rock e seu livro me acompanha nas turnês". Quatorze anos mais tarde, quando ouviu pela primeira vez a música do The Doors, Fowlie reconheceu a influência de Rimbaud nas letras de Morrison.

Em Rimbaud e Jim Morrison, Fowlie, um mestre da literatura de memórias, reconstitui a vida dos dois jovens poetas de um ponto de vista pessoal. Por terem vivido histórias tão semelhantes, configura-se aos olhos do leitor uma impressionante simetria, marcada por uma lógica muito mais rica do que o simples fato de terem ambos levado uma vida plena de excessos e de terem feito sua poesia brotar da ânsia de liberação do "eu". O resultado é uma instigante análise do nexo entre um excepcional simbolista francês que abandonou a poesia aos vinte anos e morreu jovem - cujos poemas continuam sendo lidos avidamente até hoje - e um roqueiro americano cuja carreira, meteórica, galvanizou uma geração inteira e continua fascinando milhões de fãs no mundo inteiro, mesmo após sua morte em Paris, há 44 anos.

Nesse duplo retrato, Fowlie disseca as afinidades e semelhanças entre as tradições literárias europeias, o rock americano e a cultura jovem do final do século XX.

Uma visão pessoal acerca de duas figuras extraordinárias e emblemáticas da cultura mundial, este livro é também o breviário das reflexões de um erudito sobre sois artistas.

"O Poeta torna-se vidente através de um longo desregramento de todos os sentidos."
Rimbaud

Rimbaud e Jim Morrison - Wallace Fowlie
Editora Elsevier


sexta-feira, 14 de agosto de 2015

NOSSA CULTURA OU O QUE RESTOU DELA - THEODORE DALRYMPLE (DICA DE LIVRO)

Após a editora É Realizações publicar o primeiro livro de Theodore Dalrymple no Brasil, A vida na sarjeta, é a vez de trazer outro clássico desse grande autor britânico: Nossa cultura… ou o que restou dela.

Se há um autor de língua inglesa que faltava ser traduzido para o português, este é sem dúvida Theodore Dalrymple. O médico britânico, cujo nome verdadeiro é Anthony Daniels, é um dos mais influentes pensadores da atualidade. Com um viés conservador, e por isso mesmo avesso às ideologias e fórmulas mágicas ou abstratas, Dalrymple traz ao leitor profundo conhecimento de campo, empírico, formado de baixo para cima.

Afinal, poucos possuem sua experiência quando se trata da vida daquelas pessoas mais pobres, cobaias da engenharia social parida no conforto das universidades pela elite politicamente correta e progressista.

Dalrymple rodou boa parte do mundo emergente, inclusive países comunistas, e mesmo no Reino Unido atua há décadas em prisões e hospitais de bairros pobres. Esse contato direto com as vítimas do esquerdismo lhe deu uma visão acurada dos efeitos práticos perversos das “lindas” e “nobres” ideias colocadas no papel por intelectuais muitas vezes alienados, vivendo em suas bolhas teóricas.
Confesso que não conhecia o autor há alguns anos, quando li pela primeira vez sobre suas ideias em uma coluna do filósofo Luiz Felipe Pondé. Foi “amor à primeira vista”. Desde então, devorei diversos livros de sua autoria, e a cada página ficava mais encantado com sua lucidez, sua capacidade de se expressar de forma clara e objetiva, sua visão de mundo. Dalrymple foi talvez a maior influência isolada em minha guinada à direita nos últimos anos, ou seja, minha adesão maior ao que chamo de “conservadorismo de boa estirpe”.

Passei a enxergar com bons olhos a luta pela preservação de muitos valores tradicionais, entendi melhor a importância de certos pilares culturais para a própria liberdade individual, e compreendi de forma mais clara o papel da crença religiosa nesse legado ocidental. Dalrymple, assim como eu, não é uma pessoa religiosa, mas isso não o impediu de reconhecer a relevância da fé na proteção do tecido social, especialmente nas camadas mais baixas da população.

Entre seus melhores livros, talvez o mais impactante e necessário seja Our Culture, What’s Left of It, justamente o escolhido pela editora É Realizações para lançar esse ilustre desconhecido no mercado brasileiro. Lembro-me muito bem da ocasião em que o li, pois era feriado. Foi durante o último carnaval, e troquei o hedonismo pelas lições de Dalrymple. Uma escolha apropriada, pois me permitiu ter uma clareza ainda maior do choque entre a “cultura” moderna e a clássica, defendida pelo autor.

O livro é uma ode à civilização contra o grito dos ressentidos. No mesmo feriado, assisti ao filme “A menina que roubava livros”, no qual há uma cena em que a personagem principal começa a recitar trechos de literatura, no caso um livro de H.G. Wells, em um abrigo em meio a um bombardeio aéreo durante a Segunda Guerra. A cena retrata bem o esforço individual de se preservar a beleza, a cultura e a própria civilização quando tudo em volta parece ruir. A própria beleza da menina já era um obstáculo a toda a feiura que os bárbaros nazistas espalhavam pelo mundo.

Uma cena semelhante se passa em “Titanic”, quando um quarteto segue tocando música clássica mesmo com o navio já afundando. É verdade que, aqui, a desgraça que se abateu sobre eles foi natural, causada por um iceberg, e não por seres humanos bárbaros. Mas a plasticidade da cena continua tocante: mesmo quando a morte certa está à espreita, há aqueles que conseguem manter vivo o último suspiro de civilização.

Esse é o tema central de Our Culture, What’s Left of It, uma tentativa de preservar a cultura em meio às ruínas, ainda que seja um esforço individual fadado ao fracasso. No livro, Dalrymple nos conta uma história bem similar a esta acima: um grupo de amigos realmente teria continuado a tocar música clássica – quartetos de Beethoven –, mesmo quando os nazistas da Gestapo efetuavam prisões e eles poderiam ser os próximos alvos. Esse tipo de coisa ocorre na vida real.

O médico britânico, em vários ensaios, mostra como a civilização vem sendo atacada há décadas por gente que deliberadamente deseja destruir em vez de criar. É o grito dos ressentidos, que abominam o que há de mais belo no mundo. Após a tragédia da Segunda Guerra, Theodor Adorno chegou a declarar a morte da arte: não seria mais possível fazer poesia depois do Holocausto. Mas essa desistência seria fatal, seria a derrota final da civilização pela barbárie.

Várias obras magníficas foram criadas justamente em épocas de terror, de guerras, de desgraças. Vermeer, por exemplo, viveu durante a Guerra dos Trinta Anos, que dizimou boa parte da população alemã e instaurou o caos social na região, mas isso não o impediu de pintar lindos quadros, capturando momentos sublimes do cotidiano, como em “The Milkmaid”, onde um simples derramar de leite se torna eternamente belo por seus pincéis.

Se Adorno tivesse decretado o final do prazer sexual ou da boa culinária, não seria levado tão a sério. Mas ao decretar a morte da arte, muitos aceitaram passivamente, pensando que a arte não é necessariamente o campo do belo. Estava inaugurada a época em que a arte seria o campo da feiura, do ataque ao belo, do “vale tudo”. Miró chegou a declarar abertamente que sua intenção era “assassinar a pintura”, rebelar-se contra todas as convenções.

Os revolucionários acreditam que nenhum tributo precisa ser prestado ao passado, aos gênios que nos antecederam, que ajudaram a criar aquilo que chamamos cultura. Podem fazer “tabula rasa” da civilização e começar do zero. Lênin, ícone desse senso de destruição, chegou a se negar os prazeres de escutar Beethoven porque isso o reconciliava com o mundo, uma fraqueza terrível em alguém que desejava bater com força no mundo todo, que acreditava no poder liberador da violência.

Os artistas pós-modernos passaram a ver a transgressão como desejável por si mesma. Quebrar tabus era louvável, independentemente de qual tabu fosse o alvo, de sua importância ou não para o mundo (o incesto, por exemplo, é um tabu). Oscar Wilde certa vez disse que não há algo como um livro imoral, e sim livros bem ou mal escritos. Se Hitler tivesse uma habilidade maior como escritor, devemos supor que Mein Kampf não seria imoral então?

Se quebrar tabus passa a ser o maior mérito da arte, então logo toda quebra de tabu se torna arte. Além disso, por que o privilégio de somente artistas poderem quebrar tabus em obras de “arte”? O tabu existe para todos, e logo muitos pensarão que também têm direito de ignorar os tabus não apenas simbolicamente, mas na realidade. Artistas são, para o bem e para o mal, formadores de opinião.
O niilismo estético é uma forma de destruição da civilização. Os artistas pós-modernos acreditam que não há padrão algum que não deva ser violado, o que em si se torna o novo padrão “artístico”. Como dizia Ortega y Gasset, esse é o começo da barbárie. Duchamp com seu penico, Damien Hirst com seus pedaços de animais em formol, quanto mais “ousado” contra tudo aquilo tradicional, melhor. A virtude está em chocar.

O homem autêntico moderno é aquele que rejeita todas as convenções sociais, que não encontra restrição alguma a seus apetites, ao livre exercício de suas vontades. Isso se aplica tanto à estética como à moral. É o relativismo como nova convenção social: só aquele que cospe em tudo que existe tem valor.

Uma combinação venenosa entre o pedantismo intelectual dos artistas esnobes e a admiração por tudo aquilo que é popular, como se a voz das massas fosse a voz de Deus, gerou um quadro de desprezo a toda arte nobre, vista como elitista e preconceituosa. A sua destruição deliberada é o tributo que os “intelectuais” prestam não exatamente ao proletário, mas àquilo que eles julgam ser o proletário. Precisam provar a pureza de seu sentimento ideológico com a estupidez de sua produção “artística”.

Nesse ambiente mental, os artistas são levados a produzir aquilo que é visualmente revoltante, chocante, para estar em sintonia com o mundo violento, injusto. Sem isso, o artista não consegue provar sua boa fé ideológica, teme ser visto como elitista, preconceituoso, reacionário. Tudo aquilo que é convencionalmente belo deve ser atacado, destruído.

Civilização, segundo Dalrymple, é a soma total daquelas atividades que permitem ao homem transcender a mera existência biológica e alcançar uma vida espiritual, mental, estética e material mais elevada. Restringir instintos básicos e apetites é fundamental nessa empreitada civilizatória. Fracassar nisso é liberar a besta dentro de nós, o que nos torna pior do que os animais, pois temos a capacidade de agir diferente, de forma mais refinada, civilizada.

A paixão pela destruição pode se alimentar de si mesma, em vez de ser também construtora, como acreditava o anarquista russo Bakunin. Uma vez que as forças destrutivas são liberadas, elas podem se tornar autônomas, sem propósito algum além da própria destruição. Destruir por destruir, algo que acaba arrastando uma legião de ressentidos. É um grito de angústia e desespero daqueles incapazes de apreciar o que existe de melhor no mundo.

Alguns dão vazão a este sentimento poderoso com máscaras no rosto e pedras nas mãos, outros com pincéis e canetas. A ignorância se revolta contra o conhecimento. O feio contra o belo. O inferior contra tudo aquilo que enxerga como superior, mais elevado. O próprio conceito de civilização precisa ser destruído ou relativizado: quem somos nós para saber o que é civilizado ou bárbaro? Civilização existe tanto quanto o monstro de Loch Ness ou o abominável Homem das Neves; um mito no qual apenas os ingênuos acreditam.

Ao mesmo tempo, todas as conquistas da civilização são tomadas como dadas, garantidas, como se sempre tivessem existido, e como se não corressem o menor risco de desaparecer. Nada precisa, então, ser preservado com nosso esforço, porque tudo vem de graça como um presente da Natureza. Infelizmente, parafraseando Burke, tudo que é necessário para o triunfo da barbárie é que os homens civilizados nada façam.

Vivemos, hoje, uma situação pior: os homens civilizados, em vez de nada fazer, têm ativamente colaborado com a destruição dos valores civilizados. Eles têm negado qualquer distinção entre o melhor e o pior, quase sempre preferindo o último. Eles têm rejeitado as grandes conquistas culturais em troca de diversões efêmeras e puro entretenimento vulgar. Eles têm tratado com estima qualquer sinal de comportamento depravado. Eles têm colaborado com o avanço da barbárie e a destruição da civilização. E vale lembrar que Roma não foi destruída em um só dia; foi obra de contínuos ataques, tanto de fora como de dentro.

“A fragilidade da civilização foi uma das grandes lições do século XX”. Assim Dalrymple começa o livro, logo no prefácio. Uma das observações feitas ao longo desses anos por Dalrymple é que o mal, para florescer, precisa apenas de ter suas barreiras derrubadas. Sua vida matou nele a tentação de crer em uma bondade fundamental do homem, ou que a maldade é algo excepcional ou estranho à sua natureza. Basta ver o que o povo alemão, teoricamente civilizado, foi capaz de fazer, com a cumplicidade de muitos.

Retirar a responsabilidade individual dos atos dos indivíduos, eis uma das barreiras mais importantes que acabou enfraquecida ou derrubada no mundo moderno. As teorias que transformam todo criminoso em vítima de forças maiores, da “sociedade”, ou o relativismo moral que proíbe julgamentos objetivos, isso contribuiu sobremaneira com o avanço do mal nas sociedades ditas civilizadas, como a própria Inglaterra. Um médico ou um intelectual, atentos a essa realidade, deveriam responsabilizar os indivíduos, em vez de pretender possuir alguma cura objetiva de fora, além de sua (do indivíduo) própria moral.

Isso, para Dalrymple, é a frivolidade do mal, mais até do que a banalidade, como disse Hannah Arendt: colocar o próprio prazer pessoal acima da miséria de longo prazo causada naqueles com quem você tem um dever. O médico ou o intelectual que sentem regozijo por posar como “salvadores da pátria”, como os engenheiros sociais, os burocratas ungidos capazes de consertar os males sociais de cima para baixo, esses são cúmplices da escalada do mal.

O próprio estado de bem-estar social, ao retirar a responsabilidade dos indivíduos e colocar o estado no papel de pai dos outros, acaba contribuindo para esse caos social, com pais que abandonam seus filhos e suas mulheres, com gente que não assume as rédeas da própria vida pois sabe que há “alguém” para fazê-lo em seu lugar. O paternalismo cria uma legião de “crianças” mimadas, petulantes, que demandam mais e mais e nunca aceitam se implicar em seus problemas.

Mas como reconhece Dalrymple, o “welfare state” pode ser uma condição necessária, mas não é suficiente para explicar o mal da atualidade. É aqui que entra o campo das ideias, da cultura, tema predominante em seus livros. Não basta esses indivíduos terem incentivos econômicos para agir assim; é preciso ter o estímulo moral. Isso vem da visão moderna que enaltece o egoísmo, que oferece uma desculpa moral para a irresponsabilidade individual.

Dalrymple atendeu milhares de pacientes com vidas destroçadas, problemas com drogas, maridos ou namoradas que batem nas suas mulheres, filhos com vários parceiros diferentes, e em quase todos os casos ele era claramente capaz de identificar o reconhecimento da própria escolha nessas tragédias, apesar do gozo no discurso de vítima. Consolar essas pessoas jogando para ombros alheios o fardo de seus erros pode ser prazeroso, mas é desumano.

“Ninguém é melhor do que ninguém”, “quem somos nós para julgar o outro?”, “ele é apenas humano”, “não existe certo ou errado”, “não devemos ser preconceituosos” e por aí vai, tudo criando o clima perfeito para o indivíduo fugir de sua culpa em sua própria miséria, para ignorar sua responsabilidade em suas escolhas equivocadas. A amoralidade se tornou a forma superior de “moralidade”. Não tem como dar certo. A civilização é uma escolha. Infelizmente, muitos intelectuais escolhem a barbárie.

Ao dissecar essa crise de valores, um dos sintomas apontados por Dalrymple é o excesso de sentimentalismo na atualidade, quando as pessoas confundem liberdade com deixar todas as suas emoções tomarem conta de suas ações, sem nenhum tipo de freio.

Ele cita como exemplo a celeuma com a morte da princesa Diana, o sensacionalismo que tomou conta da imprensa, e a pressão popular para que a rainha expressasse publicamente algum sofrimento mais forte. Logo a família real, conhecida por não demonstrar em público fortes emoções, por ser contida, discreta e reservada. Como resume Dalrymple, os britânicos modernos imaginam que a resposta para a constipação é a diarreia. De um extremo ao outro, não há lugar para nenhum meio termo.

Em seguida, Dalrymple visita Shakespeare, em especial Macbeth, para nos lembrar da importância dos freios aos apetites humanos. O bardo nos esfrega na cara a realidade de que não existem consertos técnicos para a humanidade, algum tipo de panaceia capaz de nos livrar de nosso “pecado original”, de nossa natureza humana suscetível às paixões (no caso de Macbeth, a ambição).
O mal, em outras palavras, estará sempre à espreita, dentro de nós, pronto para ser despertado quando a vigília cai em sonolência. A linha divisória nem sempre é clara, e Shakespeare argumenta que todos nós somos, em potencial, agentes do mal, pois ele habita nossos corações. Praticar o bem não seria tanto uma questão de conhecimento, como pensava Platão, e sim de escolha moral, de um contínuo exercício de controlar nossos apetites mais básicos e “instintivos”.

O que Shakespeare destrói, portanto, é a utopia de que bastam novos arranjos sociais para eliminar o mal do mundo. O conceito de “pecado original” seria antagônico a esta visão otimista e ingênua. A tentação do mal será parte de nossas vidas como seres humanos imperfeitos. A busca da perfeição por meio da manipulação do ambiente estará sempre fadada ao fracasso, a despeito do que pensam os “engenheiros sociais”.

O autocontrole e o limite de nossos apetites são fundamentais nessa batalha eterna contra o mal, e dependem, em última instância, de cada indivíduo. Claro que as características do ambiente podem influenciar, ajudar ou atrapalhar esta luta contínua, mas não determinam seu resultado.

A lição, segundo Dalrymple, é que fortes emoções ou desejos, por mais que virtuosos em certas ocasiões, podem ser usados para maus propósitos se escaparem do controle ético. Shakespeare não era um defensor da ideia do bom selvagem que dá vazão às suas emoções e seus instintos apenas. Ao contrário: ele temia essa besta presente nos homens.

Em outras palavras, as restrições às nossas inclinações naturais, que se deixadas livres e soltas não levam automaticamente à prática do bem e com frequência nos levam à prática do mal, são uma condição necessária e indispensável para a existência civilizada da humanidade.

Pela ótica de Dalrymple, Shakespeare estaria entre os totalitários utópicos e os libertários fundamentalistas. Ele não nos oferecia resposta fácil para o dilema humano. Sua resposta não era nem a repressão severa e draconiana, nem a total leniência e permissividade, extremos defendidos por aqueles que caem na tentação de argumentar com princípios absolutos válidos inquestionável e invariavelmente. Há que se buscar uma proporção entre ambos, o que nos torna humanos.

Prudência, especialmente contra os modismos intelectuais; cautela, principalmente com experimentos sociais jamais testados; autocontrole, para não deixar nossos apetites tomarem conta de nossas ações; e mais respeito às tradições e, acima de tudo, às limitações do animal homem: eis algumas das fundamentais mensagens de Theodore Dalrymple.

Quando olhamos para o Brasil de hoje, com uma total degradação de valores estéticos e morais, com tudo que é porcaria sendo elogiada pelos “formadores de opinião”, com a periferia completamente arrasada pelo lixo ideológico vendido por elites culpadas ou oportunistas, fica mais fácil entender por que ler Dalrymple não é apenas importante; é necessário!
Rodrigo Constantino

Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/nossa-cultura-ou-o-que-restou-dela-convite-para-palestra-sobre-dalrymple





BILL GRAHAM APRESENTA: MINHA VIDA DENTRO E FORA DO ROCK (DICA DE LIVRO)






















Sabe o “Mate-me Por Favor”? Esqueça. “Hammer of Gods”? Deixe de lado. “Come As You Are”? Aposente. O livro definitivo sobre rock and roll atende pelo nome de “Bill Graham Apresenta: Minha Vida Dentro e Fora do Rock”, escrito a quatro mãos pelo próprio Graham e por Robert Greenfield. Agora, cacete, quem é esse tal de Bill Graham, pergunta o leitor esperto antes de “dar um google”. Vamos lá: Bill Graham foi um dos produtores responsáveis em transformar o rock em um negócio lucrativo. Bem possível que sem ele o rock ainda estivesse na idade da pedra e, hoje em dia, você estivesse ouvindo jazz, bebop ou quetais ao invés de guitarras.

O livro segue o mesmo formato do citado “Mate-me Por Favor”, acumulando centenas de entrevistas que se sucedem uma após a outra em um trabalho primoroso de edição que procura esmiuçar o assunto do capítulo ouvindo todas as partes da história, com exceção, óbvia, aos mártires do rock que partiram cedo demais. Jim Morrison (que faltou a um show produzido por Graham para assistir – três vezes – ao filme “Casablanca”), Jimi Hendrix (que tocou fogo dezenas de vezes em sua guitarra na frente de Graham) e Janis Joplin (que desabafou para o amigo: “os caras da minha banda estão lá se divertindo com as garotas. E o que uma mulher faz após um show?”) estrelam passagens antológicas.










A história de Bill Graham, porém, começa muito antes dele fundar o Fillmore, em São Francisco. Filho de russos, criado na Alemanha, Graham deixou Berlim aos oito anos no auge da caça aos judeus promovida pelo exército de Hitler. Sua mãe deixou que um padre o levasse primeiro para Paris, depois para Barcelona, e então para os Estados Unidos, enquanto tentava salvar a vida de suas três irmãs. Uma delas acabou indo para Auschwitz, e saiu de lá viva em 1945. As outras acabaram tentando a sorte em países vizinhos enquanto a matriarca morreu sufocada com gás em um ônibus a caminho do campo de concentração. Toda primeira parte do livro traz a família Graham remoendo lembranças da guerra. São socos no estômago atrás de socos no estômago do leitor.

Nos Estados Unidos, Bill primeiro vê a Estatua da Liberdade, depois é adotado por uma família, vira garçom e segue um espiral de acontecimentos até descobrir sua grande vocação: produtor de shows. É aqui que o livro começa a se tornar obrigatório para fãs de rock castigados pelo fustigante e excelente começo do livro. Bill Graham torna-se um grande produtor dono de badaladas casas de shows em São Francisco e Nova York. Passa a se relacionar com todos os principais nomes do rock no mundo e muitos deles rendem passagens clássicas em “Bill Graham Apresenta: Minha Vida Dentro e Fora do Rock”. Não a toa, o prefácio é escrito por Pete Townshend, apresentado no final como “guitarrista principal do The Who, uma ótima banda do distrito de Shepherds Bush, em Londres”.


Para se ter a idéia da importância do nome do homem no cenário rock dos anos 60, 70 e 80, quando Bill Graham sentou para conversar sobre a turnê que os Rolling Stones pretendiam fazer em 1981, o martelo só foi batido de verdade quando o produtor avisou a Mick Jagger que os cartazes não iriam trazer “Bill Graham apresenta…”, como de praxe em todo o show produzido por Bill, mas apenas “Rolling Stones”. Foi uma das poucas vezes que o nome do produtor não figurou no topo do cartaz em letras garrafais maiores que o nome dos artistas que ele apresentava. Bill Graham era uma grife, um atestado de qualidade ambulante que enfrentava produtores, empresários e músicos de igual para igual na busca incansável do que ele julgava primordial no meio em que ajudou a criar: entregar ao público um grande espetáculo.














Escrito a quatro mãos, sendo que duas são do próprio Bill, é de se esperar que o livro tenha uma tendência chapa branca, mas em quase todo o livro os dois lados são ouvidos. Robbie Robertson, líder da The Band (e responsáveis por uma das passagens Top 5 do livro), dá a deixa quando é perguntando sobre o motivo em que ele e Bill deixaram de se falar. “Vou dizer exatamente o que aconteceu. Como todos nós, Bill é famoso pelo editor de memórias na cabeça dele”. O músico segue contando a sua versão da história, e o leitor ganha mais objeto para análise. Bill é acusado de oportunista pelos hippies, de manipulador por adversários, de ausente pela família, e tudo isso é escrito às claras, sem enrolação. É claro que, ao final, o peso pende para o lado criativo do produtor, mas as histórias valem à pena.

Bill conta detalhes da gravação do especial “The Last Waltz”, da The Band, filme produzido por Martin Scorsese no Winterland, uma de seus templos de shows. O produtor relembra o primeiro Woodstoock (em que aparece no filme sobre o festival descendo a lenha na organização), rememora tretas com a polícia e abre o baú para contar com detalhes a história da confusão que envolveu membros de sua produtora com integrantes da equipe do Led Zeppelin, o que causou a prisão do empresário Peter Grant, do baterista John Bonham, do empresário de turnê e de um segurança. O caso acabou num processo de dois milhões de dólares pelos funcionários de Bill Graham. E o Led Zeppelin, após esse show, nunca mais tocou nos Estados Unidos.












O produtor ainda se envolveu nos anos seguintes com o Live Aid e a turnê Conspiracy of Hope da Anistia Internacional, mas são suas lembranças sobre astros da música um dos maiores destaques do livro. Não à toa, ainda na época das entrevistas (Bill Graham morreu em 1991), cinqüenta e oito discos gravados no Fillmore foram lançados e dezessete destes foram disco de ouro (a conta deve ter duplicado nos últimos quinze anos). Em 2006, um site foi processado por integrantes do Doors, Led Zeppelin e Santana – entre muitos outros – por vender milhares de gravações raras de áudio e vídeo de shows coletados durante 30 anos nas casas de Bill Graham. A coleção foi descrita por analistas como uma das mais importantes do rock reunidas em um único negócio.

O mesmo pode ser dito do livro “Bill Graham Apresenta: Minha Vida Dentro e Fora do Rock”. As memórias do produtor que ajudou a lançar ícones do rock não invalidam, de forma alguma, os outros livros de rock (como os citados com ironia brincalhona na abertura deste texto), mas ampliam o alcance ao registrar imagens de dezenas de personalidades e contar – um pouco que seja – sobre o submundo do rock. Não é preciso ser um expert em música para saber que a briga de egos de malas como Crosby, Stills, Nash and Young deveria ser uma tortura para os que estavam ao redor da banda – e um deleite para quem estava na platéia.















Esses momentos, porém, acabam sendo sublimados por passagens líricas como a de um casal que falsificou o bilhete de entrada de uma noite de fim de ano no Fillmore, e foi levado até a administração. Bill olhou os bilhetes, perguntou como o casal tinha feito aquele trabalho, elogiou a arte gráfica e deixou-os curtir o ano novo na companhia de Janis Joplin e Grateful Dead. Ou então uma carta que o produtor recebeu de alguém que entrou sem pagar num show, e dizia ter tido uma das melhores experiências de sua vida. O tal rapaz enviou cinco notas de um e o resto em moedas para pagar pelo ingresso do show que viu de graça. Fatos pequenos como esses são jogados aqui e ali no colo do público em um livro que muitas vezes soa violento como uma canção do Sex Pistols, do Black Sabbath ou do Led Zeppelin, mas que também poderia ter momentos de Otis Redding, Bob Dylan e Rolling Stones na trilha sonora, entre muitos, mas muitos outros. Entre os livros obrigatórios de rock, este passa a ser o número 1.

“Bill Graham Apresenta: Minha Vida Dentro e Fora do Rock”, 536 páginas
De Bill Graham e Robert Greenfield (Editora Barracuda)

Fonre: http://screamyell.com.br/blog/2008/12/23/o-livro-obrigatorio-numero-1-sobre-rock/

NÃO É A MAMÃE (PARA ENTENDER A ERA DILMA) - GUILHERME FIUZA (DICA DE LIVRO)

O jornalista Guilherme Fiuza não tem o hábito de reler suas crônicas publicadas semanalmente em O GLOBO e na revista “Época”. Ele conta que os textos martelam na sua cabeça durante muito tempo e vão para o papel quase prontos. Ao receber um convite para reunir em livro suas análises sobre o governo de Dilma Rousseff, num período que vai de antes da campanha eleitoral de 2010 até meados deste ano, ele repassou o que tinha escrito e enxergou um retrato irônico do país e da sua “enteada”, como se refere à presidente, já que Lula “é o filho único do Brasil”. Com o título “Não é a mamãe: para entender a Era Dilma” (Record), a obra será lançada na próxima quinta-feira, às 19h30m, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon.

O título, explica Fiuza, sintetiza a sua maior crítica ao governo atual: tentar parecer o que não é. Na sua opinião, trata-se de um projeto que busca se perpetuar no poder para viver, junto com seus aliados, das benesses do Estado, ao mesmo tempo em que se afirma defensor das pessoas que estariam sendo massacradas “por uma suposta elite de direita”.

— Eles têm esse discurso que considero hipócrita e mentiroso e a “mamãe” foi uma dessas tentativas de vender um símbolo que não traduz a substância — critica o jornalista. — O livro coloca o quadro completo, fica clara a continuação das tramas, dos personagens. Fica mais fácil de compreender o enredo. Porque boa parte da opinião pública brasileira ainda acha que a Dilma é uma boa gerente, que o problema dela é ser autoritária, intolerante. Isso é falso. Na biografia dela, você não encontra a boa gerente. Vários problemas do seu governo surgiram de projetos que ela já coordenava antes.

A obra é organizada em cinco partes: “Dilma é a mãe (2010)”, “A faxineira (2011)”, “A babá de Rosemary (2012)”, “A plebiscitária (2013)” e “Mamãe voltou (2014)”. Fiuza chama a faxina feita pela presidente no seu primeiro ano de mandato de “maior mal-entendido da história contemporânea”, já que o Departamento Nacional de Infraestrutura (Dnit) era um dos órgãos responsáveis por tocar os projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

— Era o governo dela, montado teoricamente por ela, que estava todo podre. Foi a imprensa que levantou tudo e foi estourando, como no caso do Ministério dos Transportes. A Dilma era a mãe do PAC e vários projetos estavam ali, no Ministério dos Transportes. Ela acompanhou tudo aquilo e aí começou a aparecer uma série de superfaturamentos e aditamentos. Não se trata de um acaso, aqueles escândalos já estavam plantados ali — afirma o jornalista.

HUMOR A SERVIÇO DA CRÍTICA
Apesar da série de denúncias de corrupção contra os governos do PT, Lula se reelegeu, terminou o mandato com a maior aprovação popular da História e ainda fez a sua sucessora. Como entender tamanho sucesso? Nas suas crônicas, Fiuza faz críticas duras à falta de reação da opinião pública frente aos escândalos. Ele afirma que, em 2003, Lula recebeu uma casa arrumada, surfou uma época de bonança internacional e conseguiu colar o sucesso do período às suas políticas.

— Minha crítica acaba sendo mais à própria opinião pública do que ao PT. Porque quando acontece algo desse nível (como os escândalos no Dnit), uma sociedade saudável tem que perceber que as coisas não podem continuar do mesmo jeito — afirma ele, rebatendo as críticas de que apoia o PSDB. — Não acho o PSDB bom e o PT ruim. Tenho várias críticas ao partido e ao Fernando Henrique. Mas sou realista, quero ver o Brasil como ele é. Houve arrumação com o Plano Real, estabilização monetária, responsabilidade fiscal, as bases que o país precisava para evoluir. Lula assumiu e pegou um ciclo virtuoso da economia internacional. A vida das pessoas melhorou e o eleitor vota com o bolso. Houve uma colagem entre as duas coisas, como se tudo tivesse melhorado porque o Lula era pobre ou bonzinho ou tinha sensibilidade social.

Nas suas crônicas, o jornalista gosta de cunhar expressões irônicas, como “DisneyLula”, “João Paulo Cunha, o Mandela brasileiro” (o ex-deputado se comparou ao líder sul-africano após ser condenado no processo do mensalão), e “quadrilha do bem”. Ele conta que as ideias surgem a partir do noticiário e que o escárnio é uma maneira de despertar as pessoas, colocando o humor a serviço da crítica.
No entanto, as expressões podem provocar reações exaltadas. Uma das que provocou a maior repercussão foi “Primavera Burra”, para se referir aos protestos de junho de 2013. O jornalista defende que não existe nenhum “recado das ruas” e o que ocorreu foi uma grande mobilização contra o mal-estar provocado pelo aumento da inflação. Para ele, houve um despertar para a política, e, ao mesmo tempo, o debate virou um “Fla-Flu”.

— Por que as pessoas foram as ruas de repente? A vida foi ficando mais cara, mais apertada, os dados de emprego começaram a piorar. As pessoas sentem e foram para as ruas mesmo sem saber direito a razão de estarem tão insatisfeitas — resume. — Fico chocado com como essa galera da Primavera me odeia. Essa minha tomada de posição gerou um antagonismo muito forte, vi pessoas amigas, jovens, virem falar comigo cheio de raiva. Há um Fla-Flu muito exacerbado entre credos diferentes. Há muita intolerância de quem quer assumir uma posição política.
(Fonte: O Globo)

HONORÁVEIS BANDIDOS - PALMÉRIO DÓRIA (DICA DE LIVRO)


Trecho de Honoráveis Bandidos, de Palmério Dória
Capítulo 1 

Estado de permanente sobressalto

Comemoração com cara de velório • Por que Roseana chora, se os outros aplaudem? • Tem sujeira por trás do impoluto jurista o Rolo justifi ca outro rolo e assim por diante • A qualquer momento nas páginas policiais

Estamos em 2009. Na data em que completa meio século de carreira política, aos 78 anos, o velho coronel comemora sem o menor sinal de euforia. Por certo pesam-lhe na memória as palavras de seu falecido amigo Roberto Campos, tão entreguista que lhe pespegaram o apelido de Bob Fields, ministro do Planejamento de Castelo Branco, primeiro general de plantão do governo militar:

"Certas vitórias parecem o prenúncio de uma grande derrota. É um amanhecer que não canta."
Deputado federal, governador do Maranhão, presidente da República, cinco vezes senador. E, no início desse ano pré-eleitoral, eis que em 2010 se dariam eleições presidenciais, ele chegava pela terceira vez à presidência do Senado. Mas tinha a sensação de que tudo aquilo que havia conquistado em meio século de vida pública podia estar por um segundo. Não foi de bom agouro a cena que se seguiu a seu discurso de pouco mais de cinco minutos, ao apresentar sua candidatura à presidência da Casa, naquela manhã de 2 de fevereiro, dia de festa no mar. Em sua fala, ele citou por sinal Nossa Senhora dos Navegantes, depois de se comparar a Rui Barbosa pela longevidade na vida pública e de proclamar que não houve escândalos em suas outras passagens no cargo. Esperava uma sessão rápida, mas, para sua inquietação, vários pares passaram a revezar-se para defender o outro candidato à presidência do Senado, o petista acreano Tião Viana, e aproveitaram para feri-lo. Assim, quando abriram a inscrição para os candidatos, ele pediu para falar. Queria dar a última palavra.

Marcado pela fama de evitar confrontos em plenário, fugiu a seu estilo e fez um pronunciamento duro. Um improviso daqueles que a gente leva um mês para preparar. Deixou claro que não gostou de ver Tião Viana posar de arauto da modernidade e higienizador da podridão que paira nos ares do parlamento brasileiro.

Depois de lembrar a coincidência de 50 anos antes, quando no dia 2 de fevereiro de 1959 assumia o primeiro mandato no Congresso como deputado federal, atacou:

"Não concordo quando se fala na imoralidade do Senado. O Senado é os que aqui estão. Reconheço que, ao longo da nossa vida, muitos se tornaram menos merecedores da admiração do país, mas não a instituição."

Então, pronunciou as palavras seguintes, que trazem os sinais trocados, pois tudo quanto você vai ler é tudo quanto o velho senador não é:

"Durante a minha vida, passei aqui nesta Casa 50 anos. Muitas comissões, vamos dizer assim, muitos escândalos existiram envolvendo parlamentares, mas nunca o nome do parlamentar José Sarney constou de qualquer desses escândalos ao longo de toda a vida do Senado." Disse mais: "A palavra ética, para mim, que nunca fui de alardear nada, é um estado de espírito. Não é uma palavra para eu usar como demagogia ou uma palavra para eu usar num simples debate."

A filha Roseana Sarney, senadora pelo Maranhão, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o mesmo PMDB do pai, caminhava pelo plenário, muito nervosa. Estava em lágrimas quando o pai encerrou sua fala. Os oitenta pares o aplaudiram protocolarmente, mas um deles, de um salto pôs-se de pé e bateu palmas efusivas, acompanhadas do revoar de suas melenas. Tratava-se de Wellington Salgado, do PMDB mineiro, conhecido como Pedro de Lara ou Sansão.

Onde se encontravam os jornalistas de política nesse momento, que não registraram tal despautério? Pedro de Lara é aquela figura histriônica que roubava a cena no programa Silvio Santos como jurado ranzinza, debochado e falso moralista. E Sansão, o personagem bíblico que perdeu o vigor quando Dalila o traiu cortando-lhe a cabeleira.

Esta fi gura caricata pareceria um estranho no ninho em qualquer parlamento do mundo. Nascido no Rio, é dono da Universidade Oliveira Salgado, no município de São Gonçalo, e responde a processo por sonegação de impostos no Supremo Tribunal Federal. Conseguiu um domicílio eleitoral fajuto em Araguari, Minas Gerais, e praticamente comprou um mandato de senador ao financiar de seu próprio bolso, com 500 mil reais, uma parte da milionária campanha para o Senado de Hélio Costa, o eterno repórter do Fantástico da Rede Globo em Nova York.

Com a ida de Hélio para o Ministério das Comunicações de Lula, seu suplente Wellington então ganhou uma cadeira no Senado Federal, presente que ele paga com gratidão tão desmesurada, que separa da verba de seu gabinete todo santo mês os 7 mil reais da secretária particular do ministro. Nesse tipo de malandragem, fez como seu ídolo, colega de Senado Renan Calheiros, que vinha pagando quase 5 mil mensais para a sogra de seu assessor de imprensa ficar em casa sem fazer nada.
Mas o cabeludo senador chegou à ribalta em 2007, justamente como aguerrido integrante da tropa de choque que salvou o mandato de Renan Calheiros, então presidente do Senado e estrela principal do episódio mais indecoroso daquele ano, com amante pelada na capa da Playboy, bois voadores e fazendas-fantasma. O alagoano Renan, com uma filha fora do casamento, que teve com a apresentadora de tevê Mônica Veloso, bancava a moça com mesada paga por Cláudio Gontijo, diretor da construtora Mendes Júnior. Ao tentar explicar-se, Renan enredou-se em notas frias, rebanho superfaturado, rede de emissoras de rádio em nome de laranjas, enquanto Mônica mostrava aos leitores da revista masculina da Editora Abril a borboleta tatuada na nádega.

Durante 120 dias, enxotado pela mídia e pela opinião pública, Renan resistiu no cargo, suportando humilhações como o plenário oposicionista virando-lhe as costas no dia em que tentou presidir uma sessão. Esse era o Renan que, quase dois anos depois, no 2 de fevereiro de 2009 posaria vitorioso como articulador-mor da volta de José Sarney à presidência da Casa.

Quem diria, não? O José Sarney que já foi companheiro de um nacionalista respeitado como Seixas Dória, de um articulador do calibre de José Aparecido de Oliveira, de um jurista do porte de Clóvis Ferro Costa, todos três integrantes do grupo Bossa Nova, espécie de esquerda da União Democrática Nacional, a conservadora UDN, todos três ostentando o galardão de ter sido cassados pelo golpe militar de 1964, e sabe-se lá por quais artes só ele, Sarney, dentre os quatro amigos escapou da cassação, esse mesmo Sarney agora festejado pelo cabeludo sonegador e por uma das mais desmoralizadas figuras do cenário político brasileiro, Renan Calheiros, que tinha nos costados um inquérito com 29 volumes tramitando no Supremo.

Quer fechar o círculo direitinho? Em 2007, depois de absolvido pelo plenário em votação secreta e escapar da cassação por quebra de decoro parlamentar, na casa de quem Renan Calheiros comemorou a preservação do mandato? Na casa de seu salvador, Sarney, junto com outras figuras, como o deputado federal e ex-presidente do Senado Jader Barbalho, com know-how em renúncia para escapar de cassação; Romero Jucá, líder do PMDB no Senado; Edison Lobão, futuro ministro das Minas e Energia; e, claro, Roseana Sarney. Nesse festejo, no Lago Sul de Brasília, não se esqueceram de "homenagear" o senador amazonense Jefferson Peres. Esta fi gura íntegra do parlamento brasileiro, relator do caso Renan no Conselho de Ética, recomendou a cassação, pedida pelo povo brasileiro. Os convivas mimoseavam Jefferson a todo momento, referindo- se a ele como "aquele pobre relator".

Memorável dia 2 de fevereiro. Surpreendentes seriam as fotografias nos jornais do dia seguinte. Sarney de óculos escuros como os ditadores latino-americanos do passado, amparado pelo colega de PMDB Michel Temer, eleito presidente da Câmara, igualmente pela terceira vez. Barba e bigode. Este Michel Temer merece umas pinceladas.

TRISTESSA - JACK KEROUAC (DICA DE LIVRO)

"(…) a visão de Tristessa em minha cama, em meus braços, a estranheza de seu rosto amoroso, asteca, garota índia com olhos de Billie Holliday misteriosos e semicerrados e com uma grande voz melancólica como as atrizes vienenses de rostos tristes como Luise Rainer que fizeram toda a Ucrânia chorar em 1910".

A primeira obra de Jack Kerouac. É uma das que mais gosto do autor por fazer saltar imagens muito sensoriais em minha cabeça. Os guetos, as ruas sujas, a pobreza, uma galinha ciscando na cozinha (os animais domésticos são bem presentes na obra), as drogas para suportar a dureza dos dias, a prostituição, as roupas rotas, os olhos tristes de Tristessa, a paixão… A narrativa gira em torno da paixão de Jack Kerouac, quando de sua ida ao México, por uma garota chamada Tristessa.

Tris-te-ssa, um nome lindo. Uma das personagens centrais do livro. Uma índia asteca viciada em morfina, com os olhos de misteriosas pálpebras. Eu a imagino com seus olhos, olhos que a gente olha e quer ficar olhando, deixando-se levar suavemente nas ondas de beleza.

É um livro rápido de se ler, mas intenso sensorialmente, pelo menos foi essa a minha impressão, me senti transportado para um ambiente do qual acho perfeito.

Um mundo de pulsações delirantes e devaneios, uma garota dessas que a gente se apaixona por alguns detalhes e não consegue vivê-la da forma que gostaria, e então a gente usa um pouco de álcool para tentar escapar, a mistura do amor com uma dor sem vítima, as dores de um mundo tal como é e ao mesmo tempo as suas forças apaixonantes.

A narrativa de Kerouac favorece, quem o conhece sabe, o foco está muito mais em permitir a consciência fluir tal como se apresenta do que passá-la pelas regras e formas da letra.

Recomendadíssimo!

Escrito por Adriel Dutra
Fonte: http://letraefilosofia.com.br/tristessa-jack-kerouac-resenha/


ALGUNS TRECHOS DA OBRA

Tristessa está doidona, linda como sempre. Vai alegre para casa deitar na cama e curtir sua morfina.

Saí dessa conversa com a visão de Tristessa em minha cama, em meus braços, a estranheza de seu rosto amoroso, asteca, garota índia com olhos de Billie Holliday misteriosos e semicerrados e com uma grande voz melancólica como as atrizes vienenses de rostos tristes como Luise Rainer que fizeram toda a Ucrânia chorar em 1910.
Ed. L&PM Pocket

Curvas lindas em forma de pera moldam a pele de seu rosto, que tem pestanas compridas e tristes, e uma resignação de Virgem Maria, e uma compleição cor de café e textura de pêssego e olhos de um mistério impressionante com uma falta de expressão de profundidade rasteira, meio desdém meio um lamento de dor pesaroso.

Ela encurva os ombros com rosto de camponesa, compreendendo a si mesma de uma maneira que eu não consigo e quando olho para ela sob o tremeluzir da vela sobre as maçãs protuberantes de seu rosto e ela parece tão bonita quanto uma Ava Gardner Negra, uma Ava Marrom de rosto comprido e ossos compridos e olhos semicerrados de cílios compridos

Tristessa tira as meias para entrar nos cobertores da cama dizendo um segredo de frases de amor veneráveis a meia-voz (“Tristessa, O Yé comme tu est Belle”) (o que, sem dúvida, é o que estou pensando mas tenho medo de olhar e ver Tristessa tirar suas meias de náilon com medo de conseguir ver suas coxas cor de café com leite e ficar louco)

O gatinho mia apressado por carne – ele mesmo um pedaço de carne agitado – espírito devora espírito no vazio geral.
(…) e aquele rosto tão expressivo, de dor e beleza que sem dúvida ajuda na construção deste mundo fatal (…)

QUERO TOMÁ-LA COM as duas mãos pela cintura e puxá-la devagar para perto com poucas palavras bem escolhidas de ternura súbita como “Mi gloria angela” ou “Mi qualquer coisa” mas não tenho linguagem para encobrir meu embaraço

Desde o começo insondável dos tempos até o futuro infinito, os homens têm amado as mulheres sem lhes dizerem (…)

Tristessa. JACK KEROUAC. Ed. L&PM Pocket. 107p.

POR TRÁS DA MÁSCARA - DO PASSE LIVRE AOS BLACK BLOCS (DICA DE LIVRO)


O analista político, tradutor e palestrante Flavio Morgenstern analisou o movimento em tempo real em artigos na internet, mas agora aprofunda a análise no livro Por trás da máscara – do passe livre aos black blocs, as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Ed. Record). 

Morgenstern desmascara as “jornadas de junho”, desnudando com muito bom humor não apenas os eventos em si, mas o espírito da insurreição, o cenário, os interesses, o noticiário e, principalmente, as técnicas de utilização dos movimentos de massas para fins políticos no Brasil e no resto do mundo.

Citando farta bibliografia a respeito e comparando as versões de cada país e época, ele escreve:

“Talvez não seja o caso de se perguntar o que há de tão original em movimentos de massa, e sim como pessoas tão pouco interessadas em política de repente se uniram a discursos exigindo mais serviços estatais com o auxílio de memes e linguagem típica da internet.”

“Toda a grande novidade resume-se a elas [as manifestações] terem sido organizadas por redes sociais digitais, antes inexistentes. O restante da quizomba permanece idêntico: agitação de massas promovida por sindicatos e movimentos revolucionários, apenas mascarando seu desejo de estatização através de nomes mais apreciáveis ao grande público do século XXI, como ‘Passe Livre’ ou ‘Occupy’.”

Para entender as forças em jogo no ambiente político-cultural brasileiro e nunca mais se deixar levar por propagandas genéricas, faça a sua parte também: leia Por trás da máscara.