terça-feira, 23 de outubro de 2012

ALGUNS POETAS PREDILETOS E ALGUNS POEMAS PREFERIDOS


OS BRUXOS DA AMÉRICA
America central pisoteada pelos mochos,
engordurada por ácidos suores,
antes de entrar em teu jasmim queimado
considera-me fibra da tua nave,
asa da tua madeira combatida
pela espuma gêmea,
e enche-me do arrebatador aroma
pólen e pluma de tua taça,
margens germinais de tuas águas,
linhas frisadas do teu ninho.
Porém os bruxos matam os metais
da ressurreição, fecham as portas
e entravam a morada
das aves deslumbradoras.
Pablo Neruda Extraído do livro Canto Geral

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
que se chama coração.
Fernando Pessoa  Extraído do livro Poemas escolhidos

LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro pra ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem o mal,

Sem edição original
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,

Esperar por D. Sebastião,
Quer venha quer não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto

É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa  Extraído do livro Poemas escolhidos


GUARDADOR DE REBANHOS (trechos escolhidos por mim)

VI

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,

Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...

Sejamos simples e calmos,

Como os regatos e as árvores,
E deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...

VII


Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura....

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista á chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Alberto Caeiro Extraído do livro Poemas escolhidos


Que quando é alto e régio o pensamento,

Súbita a frase o busca
E scravo ritmo o serve.
Ricardo Reis 
Extraído do livro Poemas escolhidos


Prefiro Rosas, meu amor, à pátria,

E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo

Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa

Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a primavera

As folhas aparecem
E com o outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos

Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indif'rença

E a confiança mole
Na hora fugitiva.
Ricardo Reis Extraído do livro Poemas escolhidos


NUVENS


No dia triste o meu coração mais triste que o dia...

Obrigações morais e civis?
Complexidade de deveres, de consequências?
Não, nada...

Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol

(Também estive ao sol, ou supus que estive)
Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica,
Vaidade, alegria e sociabilidade,
E emigram para voltar, ou para não voltar,
Em navios que os transportam simplesmente.
Não sentem o que há de morte em toda partida,
De mistério em toda chegada,
De horrível em todo o novo...

Não sentem: por isso são deputados e financeiros,

Dançam e são empregados no comércio,
Vão a todos os teatros e conhecem gente...
Não sentem: para que haveriam de sentir?

Gado vestido dos currais dos Deuses,

Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício
Sob o sol, álacre, vivo, contente de sentir-se...
Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda

Para o mesmo destino!

Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho,
Vou com ele sem desconhecer...

No dia triste o meu coração mais triste do dia...

No dia triste todos os dias...
No dia tão triste...
Álvaro de Campos  Extraído do livro Poemas escolhidos


A NEGRA FÚRIA CIÚME

Morre a luz, abafa os ares 
Horrendo, espesso negrume, 
Apenas surge do Averno 
A negra fúria Ciúme. 

Sobre um sólio cor da noite 

Jaz dos Infernos o Nurne, 
E a seus pés tragando brasas 
A negra fúria Ciúme.

Crespas víboras penteia,

Dos olhos dardeja lume,
Respira veneno e peste
A negra fúria Ciúme.

Arrancando à Morte a fouce

De buído, ervado gume,
Vem retalhar corações
A negra fúria Ciúme.

Ao cruel sócio de Amor

Escapar ninguém presume,
Porque a tudo as garras lança
A negra fúria Ciúme.

Todos os males do Inferno

Em si guarda, em si resume
O mais horrível dos monstros,
A negra fúria Ciúme.

Amor inda é mais suave,

Que das rosas o perfume,
Mas envenena-lhe as graças
A negra fúria Ciúme.

Nas asas de Amor voamos

Do prazer ao áureo cume,
Porém de lá nos arroja
A negra fúria Ciúme.

Do férreo cálix da Morte

Prova o funesto azedume
Aquele a quem ferve n'alma
A negra fúria Ciúme.

Do escuro seio dos fados

Saltam males em cardume:
O pior é o que eu sofro,
A negra fúria Ciúme.

Dos imutáveis destinos

Se lê no idoso volume
Quantos estragos tem feito
A negra fúria Ciúme.

Amor inda brilha menos

Do que sutil vagalume,
Por entre as sombras que espalha
A negra fúria Ciúme.

Bocage, in 'Quadras'



COM FÚRIA E RAIVA

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada

Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início

O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo

Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"




FÚRIA NAS TREVAS O VENTO

Fúria nas trevas o vento
Num grande som de alongar,
Não há no meu pensamento
Senão não poder parar.

Parece que a alma tem

Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.

Raiva nas trevas o vento

Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso ao ar.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro



DESPEDIDA

Por mim, e por vós, e por mais aquilo 
que está onde as outras coisas nunca estão, 
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo: 
quero solidão. 

Meu caminho é sem marcos nem paisagens. 

E como o conheces? - me perguntarão. 
- Por não ter palavras, por não ter imagens. 
Nenhum inimigo e nenhum irmão. 

Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada. 

Viajo sozinha com o meu coração. 
Não ando perdida, mas desencontrada. 
Levo o meu rumo na minha mão. 

A memória voou da minha fronte. 

Voou meu amor, minha imaginação... 
Talvez eu morra antes do horizonte. 
Memória, amor e o resto onde estarão? 

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. 

(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão! 
Estandarte triste de uma estranha guerra...) 
Quero solidão.
Cecília Meireles

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
 Cecília Meireles

E minha alma, sem luz nem tenda,

passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará...
Cecília Meireles


AS COUSAS DO MUNDO

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa,
Mais isento se mostra o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa
E mais não igo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
Gregório de Matos Extraído do livro  Clássicos da Poesia Brasileira


Soneto escolhido por mim:


XVIII

Aquela cinta azul, que o céu estende
A nossa mão esquerda, aquele grito,
Com que está toda a noite o corvo aflito
Dizendo um não sei quê, que não se entende;

Levantar me de um sonho, quando atende 

O meu ouvido um mísero conflito, 
A tempo, que o voraz lobo maldito 
A minha ovelha mais mimosa ofende;

Encontrar a dormir tão preguiçoso 

Melampo, o meu fiel, que na manada 
Sempre desperto está, sempre ansioso;

Ah! queira Deus, que minta a sorte irada: 

Mas de tão triste agouro cuidadoso 
Só me lembro de Nise, e de mais nada.
Cláudio Manuel da Costa Extraído do livro  Clássicos da Poesia Brasileira


CANTO IV DE O URUGUAI (Escolhido por mim)

Trecho em que é contada a morte da índia Lindóia, encontrada por seu irmão Caitutu adormecida e com uma serpente enrolada ao corpo.

“(…) Mais perto

Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim, sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada, e irrite o monstro,
E fuja, e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitutu, que teme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
Entre a ira e o temor. Enfim sacode
O arco e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia, e fere
A serpente na testa, e a boca e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açouta o campo coa ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o prento,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspiro nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte.”
Basílio da Gama Extraído do livro  Clássicos da Poesia Brasileira


COMO EU TE AMO

Como se ama o silêncio, a luz, o aroma,
O orvalho numa flor, nos céus a estrela,
No largo mar a sombra de uma vela,
Que lá no extremo do horizonte aponta;

Como se ama o clarão da branca lua,

Da noite a mudez os sons da flauta,
As canções saudosíssimas do nauta,
Quando em mole vai e vem a nau flutua;

Como se ama das aves o gemido,

Da noite as sombras e do dia as cores,
Um céu com luzes, um jardim com flores,
Um canto quase em lágrimas sumido;

Como se ama o crepúsculo da aurora,

O manso vento que nos bosques rondeia,
O sussurro da fonte que passeia,
Uma imagem risonha e sedutora;

Como se ama o calor e a luz querida,

A harmonia, o frescor, os sons, os céus,
Silêncios e cores, perfumes e vida,
Os pais e a pátria e a virtude e a Deus.

Assim eu te amo, assim; mais do que podem

Dizer-te os lábio meus, - mais do que vale
Cantar a voz do trovador cansada:
O que é belo, o que é justo, santo e grande
Amo em tí. - Por tudo quanto sofro,
Por quando já sofri, por quanto ainda
Me resta sofrer, por tudo eu te amo!
Gonçalves Dias Extraído do livro  Clássicos da Poesia Brasileira



SE EU MORRESSE AMANHÃ

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!

Que aurora de porvir e que amanhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva 

Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora

A ânsia de glória, o doloroso afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
Alvares de Azevedo Extraído do livro  Clássicos da Poesia Brasileira

SAUDADE

Saudade é solidão acompanhada, 
é quando o amor ainda não foi embora, 
mas o amado já... 

Saudade é amar um passado que ainda não passou, 

é recusar um presente que nos machuca, 
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais... 


Saudade é o inferno dos que perderam, 

é a dor dos que ficaram para trás, 
é o gosto de morte na boca dos que continuam... 

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: 

aquela que nunca amou. 

E esse é o maior dos sofrimentos: 

não ter por quem sentir saudades, 
passar pela vida e não viver. 

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

Pablo Neruda Coletâneas 


MARTÍRIO

Beijar-te a fronte linda
Beijar-te o aspecto altivo
Beijar-te a tez morena
Beijar-te o rir lascivo 
  
Beijar o ar que aspiras
Beijar o pó que pisas 
Beijar a voz que soltas
Beijar a luz que visas 
  
Sentir teus modos frios,
Sentir tua apatia, 
Sentir até répúdio,
Sentir essa ironia, 

Sentir que me resguardas,

Sentir que me arreceias,
Sentir que me repugnas,
Sentir que até me odeias,
  
Eis a descrença e a crença,
Eis o absinto e a flor, 
Eis o amor e o ódio, 
Eis o prazer e a dor!   

Eis o estertor de morte,

Eis o martírio eterno, 
Eis o ranger dos dentes,
Eis o penar do inferno!

Junqueira Freire 

 Extraído do livro  Clássicos da Poesia Brasileira


O GUESA / CANTO TERCEIRO

As balseiras na luz resplandeciam —
oh! que formoso dia de verão!
Dragão dos mares, — na asa lhe rugiam
Vagas, no bojo indômito vulcão!
Sombrio, no convés, o Guesa errante
De um para outro lado passeava
Mudo, inquieto, rápido, inconstante,
E em desalinho o manto que trajava.
A fronte mais que nunca aflita, branca
E pálida, os cabelos em desordem,
Qual o que sonhos alta noite espanca,
"Acordem, olhos meus, dizia, acordem!"
E de través, espavorido olhando
Com olhos chamejantes da loucura,
Propendia p'ra as bordas, se alegrando
Ante a espuma que rindo-se murmura:
Sorrindo, qual quem da onda cristalina
Pressentia surgirem louras filhas;
Fitando olhos no sol, que já s'inclina,
E rindo, rindo ao perpassar das ilhas.
— Está ele assombrado?... Porém, certo
Dentro lhe idéia vária tumultua:
Fala de aparições que há no deserto,
Sobre as lagoas ao clarão da lua.
Joaquim de Sousândrade
Extraído do livro Clássicos da Poesia Brasileira


SONHANDO

Um dia, oh linda, embalada
Ao canto do gondoleiro,
Adormeceste inocente
No teu delírio primeiro,
- Por leito o berço das ondas,
Meu colo por travesseiro!

Eu, pensativo, cismava

Nalgum remoto desgosto,
Avivado na tristeza
Que a tarde tem, ao sol-posto,
E ora mirava as nuvens,
Ora fitava teu rosto.

Sonhavas então, querida,

E presa de vago anseio
Debaixo das roupas brancas
Senti bater o teu seio,
E meu nome num soluço
À flor dos lábios te veio!

Tremeste como a tulipa

Batida do vento frio...
Suspiraste como a folha
Da brisa ao doce cicio...
E abriste os olhos sorrindo
Às águas quietas do rio!

Depois - uma vez - sentados

Sob a copa do arvoredo,
Falei-te desse soluço
Que os lábios abriu-te a medo...
- Mas tu, fugindo, guardaste
Daquele sonho o segredo!... 
Casimiro de Abreu 
Extraído do livro Clássicos da Poesia Brasileira


VIDA DA FLOR 

Por que vergas-me a fronde sobre a terra,
Diz a flor da colina ao manso vento,
SE apenas às manhãs o doce orvalho
          Hei gozado um momento?

Tímida ainda, nas folhagens verdes
Abro a corola à quietação das noites,
Ergo-me bela, me rebaixas triste
          Com teus feros açoites!
-
Oh! Deixa-me crescer, lançar perfumes,
Vicejar das estrelas à magia,
Que minha vida pálida se encerra
          No espaço de um dia!
-
Mas o vento agitava sem piedade
A fronte virgem da formosa flor,
Que pouco a pouco se tingia, triste,
          De mórbido palor.
-
Não vês, ó brisa?  lacerada, murcha,
Tão cedo ainda vou pendendo ao chão,
E em breve tempo esfolharei já morta
          Sem chegar ao verão?
-
Tem piedade de mim!  Deixa-me ao menos
Desfrutar um momento de prazer,
Pois que é meu fado despontar n’aurora
          E ao crepúsc’lo morrer!…
-
Brutal amante não lhe ouviu as queixas,
Nem às suas dores atenção prestou,
E a flor mimosa, retraindo as pétalas,
          Na tige se inclinou.
-
Surgiu n’aurora,   não chegou à tarde,
Teve um momento de existência só!
A noite veio, procurou por ela,
          Mas a encontrou no pó.
-
Ouviste, ó virgem, a legenda triste
Da flor do outeiro e seu funesto fim?
Irmã das flores à mulher, às vezes,
          Também sucede assim.

Fagundes Varela 

Extraído do livro Clássicos da Poesia Brasileira



VIA LÁCTEA

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo 
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto, 
Que, para ouvi-las, muita vez desperto 
E abro as janelas, pálido de espanto... 

E conversamos toda a noite, enquanto 

A Via Láctea, como um pálio aberto, 
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, 
Inda as procuro pelo céu deserto. 

Direis agora: "Tresloucado amigo! 

Que conversas com elas? Que sentido 
Tem o que dizem, quando estão contigo?" 

E eu vos direi: "Amai para entendê-las! 

Pois só quem ama pode ter ouvido 
Capaz de ouvir e entender estrelas"
Olavo Bilac 
Extraído do livro Clássicos da Poesia Brasileira



PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundíssimamente hipocondríaco, 

Este ambiente me causa repugnância... 
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia 
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —

Que o sangue podre das carnificinas 
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los, 

E há-de deixar-me apenas os cabelos, 
Na frialdade inorgânica da terra!
Augusto dos Anjos 
Extraído do livro Clássicos da Poesia Brasileira

O GONDOLEIRO DO AMOR

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,

Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é cavatina

Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento.

E como em noites de Itália

Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora

Que o horizonte enrubesceu,
— Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu;

Nas tempestades da vida

Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada

Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua:

Como é doce, em pensamento,

Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é — um astro,

No silêncio uma canção,
É brisa — nas calmarias,
É abrigo — no tufão;

Por isso eu te amo, querida,

Quer no prazer, quer na dor...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.
Castro Alves
Extraído do livro Espumas Flutuantes


AS TREVAS

Tive um sonho que em tudo não foi sonho!...

O sol brilhante se apagava: e os astros,

Do eterno espaço na penumbra escura,
Sem raios, e sem trilhos, vagueavam.
A terra fria balouçava cega
E tétrica no espaço ermo de lua.
A manhã ia, vinha... e regressava...
Mas não trazia o dia! Os homens pasmos
Esqueciam no horror dessas ruínas
Suas paixões: E as almas conglobadas
Gelavam-se num grito de egoísmo
Que demandava "luz". Junto às fogueiras
Abrigavam-se. . . e os tronos e os palácios,
Os palácios dos reis, o albergue e a choça
Ardiam por fanais. Tinham nas chamas
As cidades morrido. Em torno às brasas
Dos seus lares os homens se grupavam,
P'ra à vez extrema se fitarem juntos.
Feliz de quem vivia junto às lavas
Dos vulcões sob a tocha alcantilada!

Hórrida esp'rança acalentava o mundo!

As florestas ardiam! ... de hora em hora
Caindo se apagavam; crepitando,
Lascado o tronco desabava em cinzas.
E tudo... tudo as trevas envolviam.
As frontes ao clarão da luz doente
Tinham do inferno o aspecto... quando às vezes
As faíscas das chamas borrifavam-nas.
Uns, de bruços no chão, tapando os olhos
Choravam. Sobre as mãos cruzadas — outros —
Firmando a barba, desvairados riam.
Outros correndo à toa procuravam
O ardente pasto p'ra funéreas piras.
Inquietos, no esgar do desvario,
Os olhos levantavam p'ra o céu torvo,
Vasto sudário do universo — espectro —,
E após em terra se atirando em raivas,
Rangendo os dentes, blásfemos, uivavam!

Lúgubre grito os pássaros selvagens

Soltavam, revoando espavoridos
Num vôo tonto co'as inúteis asas!
As feras 'stavam mansas e medrosas!
As víboras rojando s'enroscavam
Pelos membros dos homens, sibilantes,
Mas sem veneno... a fome lhes matavam!
E a guerra, que um momento s'extinguira,
De novo se fartava. Só com sangue
Comprava-se o alimento, e após à parte
Cada um se sentava taciturno,
P'ra fartar-se nas trevas infinitas!
Já não havia amor! ... O mundo inteiro
Era um só pensamento, e o pensamento
Era a morte sem glória e sem detença!
O estertor da fome apascentava-se
Nas entranhas ... Ossada ou carne pútrida
Ressupino, insepulto era o cadáver.

Mordiam-se entre si os moribundos

Mesmo os cães se atiravam sobre os donos,
Todos exceto um só... que defendia
O cadáver do seu, contra os ataques
Dos pássaros, das feras e dos homens,
Até que a fome os extinguisse, ou fossem
Os dentes frouxos saciar algures!
Ele mesmo alimento não buscava ...
Mas, gemendo num uivo longo e triste,
Morreu lambendo a mão, que inanimada
Já não podia lhe pagar o afeto.

Faminta a multidão morrera aos poucos.

Escaparam dous homens tão-somente
De uma grande cidade. E se odiavam.
... Foi junto dos tições quase apagados
De um altar, sobre o qual se amontoaram
Sacros objetos p'ra um profano uso,
Que encontraram-se os dous... e, as cinzas mornas
Reunindo nas mãos frias de espectros,
De seus sopros exaustos ao bafejo
Uma chama irrisória produziram! ...
Ao clarão que tremia sobre as cinzas
Olharam-se e morreram dando um grito.
Mesmo da própria hediondez morreram,
Desconhecendo aquele em cuja fronte
Traçara a fome o nome de Duende!

O mundo fez-se um vácuo. A terra esplêndida,

Populosa tornou-se numa massa
Sem estações, sem árvores, sem erva.
Sem verdura, sem homens e sem vida,
Caos de morte, inanimada argila!
Calaram-se o Oceano, o rio, os lagos!
Nada turbava a solidão profunda!
Os navios no mar apodreciam
Sem marujos! os mastros desabando
Dormiam sobre o abismo, sem que ao menos
Uma vaga na queda alevantassem,
Tinham morrido as vagas! e jaziam
As marés no seu túmulo... antes delas
A lua que as guiava era já morta!
No estagnado céu murchara o vento;
Esvaíram-se as nuvens. E nas trevas
Era só trevas o universo inteiro.
Castro Alves 
Extraído do livro Espumas Flutuantes


OS VAZIOS DO HOMEM

Os vazios do homem não sentem ao nada
do vazio qualquer: do do do casaco vazio,
do da saca vazia (que não ficam de pé
quando vazios, ou o homem com vazios);
os vazios do homem sentem a um cheio
de um coisa que inchasse já inchada;
ou ao que deve sentir, quando cheia,
uma saca,: todavia, não qualquer saca.
Os vazios do homem, esse vazio cheio,
não sentem ao que uma saca de tijolos,
uma saca de rebites; nem têm o pulso
que bate numa de sementes, de ovos.

2


Os vazios do homem, ainda que sintam

a uma plenitude (gora mas presença),
contém nadas, contêm apenas vazios:
o que a esponja, vazia quando plena;
incham do que a esponja, de ar vazio,
e dele copiam certamente a estrutura:
toda em grutas, ou em gotas de vazio,
postas em cachos de bolha, de não-uva.
Esse cheio vazio sente ao que uma saca
mas cheia de esponjas cheias de vazio;
os vazios do homem ou o vazio inchado:
ou o vazio que inchou por estar vazio.

João Cabral de Melo Neto Antologia Poética

(1920-1999)


A UM AUSENTE

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,

de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste
Carlos Drummond de Andrade Fragmentos


SONETO DO AMIGO

Enfim, depois de tanto erro passado 
Tantas retaliações, tanto perigo 
Eis que ressurge noutro o velho amigo 
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado 

Com olhos que contêm o olhar antigo 
Sempre comigo um pouco atribulado 
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano 

Sabendo se mover e comover 
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica

Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica..

Vinícios de Moraes Sonetos



O QUE QUER DIZER

O que quer dizer, diz.
Não fica fazendo
o que , um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.
Paulo Leminski

MERDA E OURO

Merda é veneno. 
No entanto, não há nada 
que seja mais bonito 
que uma bela cagada. 
Cagam ricos, cagam pobres, 
cagam reis e cagam fadas. 
Não há merda que se compare 
à bosta da pessoa amada.
Paulo Leminski Extraído do livro Distraídos Venceremos

CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA

Mocidade presa 
A tudo oprimida 
Por delicadeza 
Eu perdi a vida. 
Ah! Que o tempo venha 
Em que a alma se empenha. 

Eu me disse: cessa, 

Que ninguém te veja: 
E sem a promessa 
De algum bem que seja. 
A ti só aspiro 
Augusto retiro. 

Tamanha paciência 

Não me hei de esquecer. 
Temor e dolência, 
Aos céus fiz erguer. 
E esta sede estranha 
A ofuscar-me a entranha. 

Qual o Prado imenso 

Condenado a olvido, 
Que cresce florido 
De joio e de incenso 
Ao feroz zunzum das 
Moscas imundas.

Ociosa juventude

De tudo pervertida
Por minha virtude
Eu perdi a vida.
Ah! Que venha a hora
Que as almas enamora.

Eu disse a mim: cessa,

Que eu não te veja:
Nenhuma promessa
De rara beleza.
E vá sem martírio
Ao doce exílio.

Foi tão longa a espera

Que eu não olvido.
O terror, fera,
Aos céus dedico.
E uma sede estranha
Corrói-me as entranhas.

Assim os Prados

Vastos, floridos
De mirra e nardo
Vão esquecidos
Na viagem tosca
De cem feias moscas.

Ah! A viuvagem

Sem quem as ame
Só têm a imagem
Da Notre-Dame!
Será a prece pia
À Virgem Maria?

Ociosa juventude

De tudo pervertida
Por minha virtude
Eu perdi a vida.
Ah! Que venha a hora
Que as almas enamora!
Arthur Rimbaud


A CELEBRAÇÃO DO LAGARTO


LEÕES NA RUA

Leões na rua & deambulando
Cães com o cio, enfurecidos, espumando
Uma besta encurralada no coração da cidade
O corpo da sua mãe
Apodrecendo no chão veronil
Ele abandonou a cidade
Foi para o Sul
E atravessou a fronteira
Deixou o caos & a desordem
Para trás
Por cima do ombro
Uma manhã ele acordou num hotel verde
Com uma estranha criatura gemendo ao seu lado.
Suada lamacenta da sua pele brilhante.
Estão todos?
Estão todos?
Estão todos?
A cerimónia está prestes a começar.
ACORDEM
ACORDEM!
Vocês não se lembram onde foi
Terá este sonho parado?
A serpente era ouro pálido acetinada & encolhida
Tínhamos medo de tocá-la.
Os lençóis eram quentes e mortas prisões.
E ela estava a meu lado, velha,
Ele é, não; jovem.
O seu escuro cabelo ruivo.
A suave pele branca.
Agora, corre para o espelho da casa-de-banho,
Olha!
Ela vem para cá.
Não consigo viver em cada lento século do seu movimento.
Deixo a minha bochecha escorregar
O ladrilho fresco e suave
Sente o bom e frio sangue borbulhante.
Os silvos suaves, serpentes de chuva...

UM PEQUENO JOGO

Antes eu tinha um pequeno jogo
Gostava de rastejar no meu cérebro
Penso que sabes qual o jogo que me refiro
Refiro-me a um jogo chamado Enlouquecer
Agora devias tentar este pequeno jogo
Apenas fecha os olhos e esquece o teu nome
esquece o mundo, esquece as pessoas
E nós ergueremos um campanário diferente.
Este pequeno jogo é divertido de fazer.
Apenas fecha os olhos, impossível perder
E eu estou aqui, eu vou também
Liberta controlo, estamos a atravessar

OS HABITANTES DA COLINA

Bem no fundo do cérebro
Passando bem o limiar da dor
Onde nunca há nenhuma chuva
E a chuva cai suavemente sobre a cidade
E sobre as cabeças de todos nós
E no labirinto de correntes por baixo
Sossegada e celeste presença de
Nervosos habitantes do monte nos suaves montes de volta
Répteis com fartura
Fósseis, cavernas, frescas elevações de ar
Cada casa repete um molde
Janela rolou
Um carro de besta trancado contra a manhã
Todos dormem agora
Cobertores silenciosos, espelhos livres
Pó cega debaixo das camas de casais legítimos
Enrolados em lençóis
E filhas, enevoada com sémen
Olhos nos seus mamilos
Esperem! Ouve um massacre aqui
Não pares para falar ou olhar em volta
As tuas luvas e o leque estão no chão
Vamos sair da cidade
Vamos de fuga
E tu és aquela que eu quero me vir!!

NÃO TOCAR NA TERRA

Não tocar na terra, não ver o sol
Nada mais a fazer a não ser fugir, fugir, fugir
Vamos fugir, vamos fugir
Casa no topo do monte, a lua jaz quieta
Sombras nas árvores testemunhando a brisa selvagens
Anda, querida, foge comigo
Vamos fugir
Foge comigo, foge comigo, foge comigo
Vamos fugir
A mansão é amena no topo do monte
Ricos são os quartos e os confortos lá
Vermelhos são os braços de luxuosas cadeiras
E não vais saber nada até entrares lá dentro
Corpo morto do Presidente no carro do condutor
O motor funciona a cola e alcatrão
Anda connosco, não vamos muito longe
Para Este conhecer o Czar
Foge comigo, foge comigo, foge comigo
Vamos fugir
Alguns foras-de-lei vivem junto ao lago
A filha do ministro está apaixonada pela serpente
Que vive num poço junto à estrada
Acorda, rapariga, Estamos quase em casa
Sol, sol, sol
Queima, queima, queima
Lua, lua, lua
Apanhar-te-ei em breve... em breve... em breve!
Eu sou o Rei Lagarto
Posso fazer qualquer coisa

OS NOMES DOS REINOS

Nós chegamos dos rios e auto-estradas
Nós chegamos de florestas e cascatas
Nós chegamos de Carson e Springfield
Nós chegamos de Phoenix encantada
E posso dizer-te os nomes dos Reinos
Posso dizer-te as coisas que sabes
Ouvindo por um punhado de silêncio
Trepando vales até à sombra

O PALÁCIO DO EXÍLIO

Durante sete anos habitei no livre Palácio do Exílio
Jogando estranhos jogos com as raparigas da ilha
Agora estou de volta à terra dos justos
E dos fortes e dos sábios
Irmãos e irmãs da pálida floresta
Crianças da noite
Quem de entre vós fugirá com a caça?
Agora a noite chega com a sua legião púrpura
Metam-se nas vossas tendas e nos vossos sonhos
Amanhã entramos na cidade do meu nascimentoQuero estar preparado.

"O GÊNERO DE LIBERDADE MAIS IMPORTANTE, É SERES VERDADEIRO / TROCAS A TUA REALIDADE POR UM PERSONAGEM / TROCAS OS TEUS SENTIDOS POR UMA ATUAÇÃO/ DESISTES DA CAPACIDADE E EM TROCA POES UMA MÁSCARA/ NÃO PODE HAVER UMA REVOLUÇÃO EM GRANDE-ESCALA, SE ANTES NÃO HOUVER REVOLUÇÃO INDIVIDUAL DA PESSOA/ PRIMEIRO TEM QUE ACONTECER CÁ DENTRO."


"As pessoas precisam de Fios

Escritores, heróis, estrelas,
dirigentes
Para dar sentido à vida
O barco de areia de uma criança virado
para o sol.
Soldados de plástico na guerra suja
em miniatura. Fortalezas.
Navios de Guerra de Garagem.
Rituais, teatro, danças
Para reafirmar necessidades Tribais & memórias
um chamamento para o culto, unindo
acima de tudo, um estado anterior,
um desejo da família & a
magia certa da infância."

"No primeiro brilho do Éden nós corremos para o mar, ficando por lá, na praia da liberdade

Esperando pelo sol.
Você não percebe que agora que a primavera chegou,
é hora de viver ao sol difuso?
Esperando pelo sol
sperando que você venha até aqui
Esperando que você me diga o que deu errado
Essa é a vida mais estranha que eu já conheci"
(Waiting for The Sun)

"Sabem do febril progresso sob as estrelas?

Sabem que nós existimos?
Esqueceram porventura as chaves do Reino?
Já foram dados à luz e estão vivos?
Vamos reinventar os deuses e os mitos das idades;
Celebrar símbolos do mais fundo das antigas florestas (Esqueceram as lições da guerra pretérita)
[...]
Sabem que temos sido levados
à matança por almirantes plácidos
e que lentos generais gordos se tornam
obscenos com o sangue jovem"
(Fragmento de Uma Oração Americana) 
James Douglas Morrison


O PÁSSARO AZUL

(Tradução: Pedro Gonzaga)

há um pássaro azul em meu peito

que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você ?
 Charles Bukowski


ENTÃO QUERES SER UM ESCRITOR

(Tradução: Manuel A. Domingos)

se não sai de ti a explodir

apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti

a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher

ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,

não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
— devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,

e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.

e nunca houve.
 Charles Bukowski


QUATRO E MEIA DA MANHÃ

(Tradução: Jorge Wanderley)

os barulhos do mundo

com passarinhos vermelhos,
são quatro e meia da
manhã,
são sempre

quatro e meia da manhã,

e eu escuto
meus amigos:
os lixeiros
e os ladrões
e gatos sonhando com
minhocas,
e minhocas sonhando
os ossos
do meu amor,
e eu não posso dormir
e logo vai amanhecer,
os trabalhadores vão se levantar
e eles vão procurar por mim
no estaleiro
e dirão:
“ele tá bêbado de novo”,
mas eu estarei adormecido,
finalmente, no meio das garrafas e
da luz do sol,
toda a escuridão acabada,
os braços abertos como
uma cruz,
os passarinhos vermelhos
voando,
voando,
rosas se abrindo no fumo
e
como algo esfaqueado e
cicatrizando,
como 40 páginas de um romance ruim,
um sorriso bem na
minha cara de idiota.
 Charles Bukowski


POEMA NOS MEUA 43 ANOS

(Tradução: Jorge Wanderley)

terminar sozinho

no túmulo de um quarto
sem cigarros
nem bebida—
careca como uma lâmpada,
barrigudo,
grisalho,
e feliz por ter um quarto.
…de manhã

eles estão lá fora

ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores , médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carro,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiros,
motoristas de táxi…
e você se vira
para o lado pra pegar o sol
nas costas e não
direto nos olhos.
 Charles Bukowski

UMA PALAVRINHA SOBRE FAZEDORES DE POEMAS RÁPIDOS E MODERNOS

(Tradução: Jorge Wanderley)

é muito fácil parecer moderno

enquanto se é o maior idiota jamais nascido;
eu sei; eu joguei fora um material horrível
mas não tão horrível como o que leio nas revistas;
eu tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitais
que não me deixará fingir que sou
uma coisa que não sou —
o que seria um duplo fracasso: o fracasso de uma pessoa
na poesia
e o fracasso de uma pessoa
na vida.
e quando você falha na poesia
você erra a vida,
e quando você falha na vida
você nunca nasceu
não importa o nome que sua mãe lhe deu.
as arquibancadas estão cheias de mortos
aclamando um vencedor
esperando um número que os carregue de volta
para a vida,
mas não é tão fácil assim—
tal como no poema
se você está morto
você podia também ser enterrado
e jogar fora a máquina de escrever
e parar de se enganar com
poemas cavalos mulheres a vida:
você está entulhando a saída — portanto saia logo
e desista das
poucas preciosas
páginas.
 Charles Bukowski


OUTRA CAMA

(Tradução: Pedro Gonzaga)

outra cama

outra mulher

mais cortinas

outro banheiro
outra cozinha

outros olhos

outro cabelo
outros
pés e dedos.

todos à procura.

a busca eterna.

você fica na cama

ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela…
é tudo tão confortável —
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza…

após ela sair você se levanta e usa

o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.
você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.

quando você vai embora é com tristeza

mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.

você dirige até a praia e fica sentado

em seu carro. é meio-dia.

— outra cama, outras orelhas, outros

brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.

você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.

para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.

você dá a partida no carro e engata a primeira,

pensando, vou telefonar para janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.
 Charles Bukowski


UM POEMA DE AMOR

(Tradução: Jorge Wanderley)

todas as mulheres

todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.

suas orelhas elas todas têm

orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.

principalmente

as mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga
derretida
nela.

há uma aparência

no olho: elas foram
tomadas, foram
enganadas. não sei mesmo o que
fazer por
elas.

sou

um bom cozinheiro, um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar — eu estava ocupado
com coisas maiores.

mas gostei das camas variadas

lá delas
fumar um cigarro
olhando pro teto. não fui nocivo nem
desonesto. só um
aprendiz.

sei que todas têm pés e cruzam

descalças pelo assoalho
enquanto observo suas tímidas bundas na
penumbra. sei que gostam de mim algumas até
me amam
mas eu amo só umas
poucas.

algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;

outras falam mansamente da
infância e pais e
paisagens; algumas são quase
malucas mas nenhuma delas é
desprovida de sentido; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
são as melhores em
outras coisas; todas têm limites como eu tenho
limites e nos aprendemos
rapidamente.

todas as mulheres todas as

mulheres todos os
quartos de dormir
os tapetes as
fotos as
cortinas, tudo mais ou menos
como uma igreja só
raramente se ouve
uma risada.

essas orelhas esses

braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto e a
carência me
sustentaram, me
sustentaram.
 Charles Bukowski

JÁ MORREU

(Tradução: Pedro Gonzaga)

sempre quis transar com

henry miller, ela disse,
mas quando cheguei lá
era tarde demais.
diabos, eu disse, vocês
sempre chegam tarde demais, garotas.
hoje já me masturbei
duas vezes.
não era esse o problema dele,
ela disse. a propósito
como você consegue bater
tantas?
é o espaço, eu digo,
todo o espaço entre
os poemas e os contos, é
intolerável.
você deveria esperar, ela disse,
você é impaciente.
o que você pensa de céline?
perguntei.
queria transar com ele também.

já morreu, eu disse.

já morreu, ela disse.
importa-se de ouvir uma
musiquinha? perguntei.
pode ser legal, ela disse.
dei-lhe ives.
era tudo que me restava
naquela noite.
 Charles Bukowski

ENCURRALADO

(Tradução: Pedro Gonzaga)

bem, eles diziam que tudo terminaria

assim: velho. o talento perdido. tateando às cegas em busca
da palavra

ouvindo os passos

na escuridão, volto-me
para olhar atrás de mim…

ainda não, velho cão…

logo em breve.

agora

eles se sentam falando sobre
mim: “sim, acontece, ele já
era… é
triste…”

“ele nunca teve muito, não é

mesmo?”

“bem, não, mas agora…”


agora

eles celebram minha derrocada
em tavernas que há muito já não
frequento.

agora

bebo sozinho
junto a essa máquina que mal
funciona

enquanto as sombras assumem

formas

combato retirando-me

lentamente

agora

minha antiga promessa
definha
definha

agora

acendendo novos cigarros
servido mais
bebidas

tem sido um belo

combate

ainda

é.
 Charles Bukowski

CONFISSÃO

(Tradução: Jorge Wanderley)

esperando pela morte

como um gato
que vai pular
na cama
sinto muita pena de
minha mulher
ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo talvez
sacudi-lo de novo:
hank!
e hank não vai responder
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora ser ditas:
eu te
amo
 Charles Bukowski