Se há um autor de língua inglesa que faltava ser traduzido para o português, este é sem dúvida Theodore Dalrymple. O médico britânico, cujo nome verdadeiro é Anthony Daniels, é um dos mais influentes pensadores da atualidade. Com um viés conservador, e por isso mesmo avesso às ideologias e fórmulas mágicas ou abstratas, Dalrymple traz ao leitor profundo conhecimento de campo, empírico, formado de baixo para cima.
Afinal, poucos possuem sua experiência quando se trata da vida daquelas pessoas mais pobres, cobaias da engenharia social parida no conforto das universidades pela elite politicamente correta e progressista.
Dalrymple rodou boa parte do mundo emergente, inclusive países comunistas, e mesmo no Reino Unido atua há décadas em prisões e hospitais de bairros pobres. Esse contato direto com as vítimas do esquerdismo lhe deu uma visão acurada dos efeitos práticos perversos das “lindas” e “nobres” ideias colocadas no papel por intelectuais muitas vezes alienados, vivendo em suas bolhas teóricas.
Confesso que não conhecia o autor há alguns anos, quando li pela primeira vez sobre suas ideias em uma coluna do filósofo Luiz Felipe Pondé. Foi “amor à primeira vista”. Desde então, devorei diversos livros de sua autoria, e a cada página ficava mais encantado com sua lucidez, sua capacidade de se expressar de forma clara e objetiva, sua visão de mundo. Dalrymple foi talvez a maior influência isolada em minha guinada à direita nos últimos anos, ou seja, minha adesão maior ao que chamo de “conservadorismo de boa estirpe”.
Passei a enxergar com bons olhos a luta pela preservação de muitos valores tradicionais, entendi melhor a importância de certos pilares culturais para a própria liberdade individual, e compreendi de forma mais clara o papel da crença religiosa nesse legado ocidental. Dalrymple, assim como eu, não é uma pessoa religiosa, mas isso não o impediu de reconhecer a relevância da fé na proteção do tecido social, especialmente nas camadas mais baixas da população.
Entre seus melhores livros, talvez o mais impactante e necessário seja Our Culture, What’s Left of It, justamente o escolhido pela editora É Realizações para lançar esse ilustre desconhecido no mercado brasileiro. Lembro-me muito bem da ocasião em que o li, pois era feriado. Foi durante o último carnaval, e troquei o hedonismo pelas lições de Dalrymple. Uma escolha apropriada, pois me permitiu ter uma clareza ainda maior do choque entre a “cultura” moderna e a clássica, defendida pelo autor.
O livro é uma ode à civilização contra o grito dos ressentidos. No mesmo feriado, assisti ao filme “A menina que roubava livros”, no qual há uma cena em que a personagem principal começa a recitar trechos de literatura, no caso um livro de H.G. Wells, em um abrigo em meio a um bombardeio aéreo durante a Segunda Guerra. A cena retrata bem o esforço individual de se preservar a beleza, a cultura e a própria civilização quando tudo em volta parece ruir. A própria beleza da menina já era um obstáculo a toda a feiura que os bárbaros nazistas espalhavam pelo mundo.
Uma cena semelhante se passa em “Titanic”, quando um quarteto segue tocando música clássica mesmo com o navio já afundando. É verdade que, aqui, a desgraça que se abateu sobre eles foi natural, causada por um iceberg, e não por seres humanos bárbaros. Mas a plasticidade da cena continua tocante: mesmo quando a morte certa está à espreita, há aqueles que conseguem manter vivo o último suspiro de civilização.
Esse é o tema central de Our Culture, What’s Left of It, uma tentativa de preservar a cultura em meio às ruínas, ainda que seja um esforço individual fadado ao fracasso. No livro, Dalrymple nos conta uma história bem similar a esta acima: um grupo de amigos realmente teria continuado a tocar música clássica – quartetos de Beethoven –, mesmo quando os nazistas da Gestapo efetuavam prisões e eles poderiam ser os próximos alvos. Esse tipo de coisa ocorre na vida real.
O médico britânico, em vários ensaios, mostra como a civilização vem sendo atacada há décadas por gente que deliberadamente deseja destruir em vez de criar. É o grito dos ressentidos, que abominam o que há de mais belo no mundo. Após a tragédia da Segunda Guerra, Theodor Adorno chegou a declarar a morte da arte: não seria mais possível fazer poesia depois do Holocausto. Mas essa desistência seria fatal, seria a derrota final da civilização pela barbárie.
Várias obras magníficas foram criadas justamente em épocas de terror, de guerras, de desgraças. Vermeer, por exemplo, viveu durante a Guerra dos Trinta Anos, que dizimou boa parte da população alemã e instaurou o caos social na região, mas isso não o impediu de pintar lindos quadros, capturando momentos sublimes do cotidiano, como em “The Milkmaid”, onde um simples derramar de leite se torna eternamente belo por seus pincéis.
Se Adorno tivesse decretado o final do prazer sexual ou da boa culinária, não seria levado tão a sério. Mas ao decretar a morte da arte, muitos aceitaram passivamente, pensando que a arte não é necessariamente o campo do belo. Estava inaugurada a época em que a arte seria o campo da feiura, do ataque ao belo, do “vale tudo”. Miró chegou a declarar abertamente que sua intenção era “assassinar a pintura”, rebelar-se contra todas as convenções.
Os revolucionários acreditam que nenhum tributo precisa ser prestado ao passado, aos gênios que nos antecederam, que ajudaram a criar aquilo que chamamos cultura. Podem fazer “tabula rasa” da civilização e começar do zero. Lênin, ícone desse senso de destruição, chegou a se negar os prazeres de escutar Beethoven porque isso o reconciliava com o mundo, uma fraqueza terrível em alguém que desejava bater com força no mundo todo, que acreditava no poder liberador da violência.
Os artistas pós-modernos passaram a ver a transgressão como desejável por si mesma. Quebrar tabus era louvável, independentemente de qual tabu fosse o alvo, de sua importância ou não para o mundo (o incesto, por exemplo, é um tabu). Oscar Wilde certa vez disse que não há algo como um livro imoral, e sim livros bem ou mal escritos. Se Hitler tivesse uma habilidade maior como escritor, devemos supor que Mein Kampf não seria imoral então?
Se quebrar tabus passa a ser o maior mérito da arte, então logo toda quebra de tabu se torna arte. Além disso, por que o privilégio de somente artistas poderem quebrar tabus em obras de “arte”? O tabu existe para todos, e logo muitos pensarão que também têm direito de ignorar os tabus não apenas simbolicamente, mas na realidade. Artistas são, para o bem e para o mal, formadores de opinião.
O niilismo estético é uma forma de destruição da civilização. Os artistas pós-modernos acreditam que não há padrão algum que não deva ser violado, o que em si se torna o novo padrão “artístico”. Como dizia Ortega y Gasset, esse é o começo da barbárie. Duchamp com seu penico, Damien Hirst com seus pedaços de animais em formol, quanto mais “ousado” contra tudo aquilo tradicional, melhor. A virtude está em chocar.
O homem autêntico moderno é aquele que rejeita todas as convenções sociais, que não encontra restrição alguma a seus apetites, ao livre exercício de suas vontades. Isso se aplica tanto à estética como à moral. É o relativismo como nova convenção social: só aquele que cospe em tudo que existe tem valor.
Uma combinação venenosa entre o pedantismo intelectual dos artistas esnobes e a admiração por tudo aquilo que é popular, como se a voz das massas fosse a voz de Deus, gerou um quadro de desprezo a toda arte nobre, vista como elitista e preconceituosa. A sua destruição deliberada é o tributo que os “intelectuais” prestam não exatamente ao proletário, mas àquilo que eles julgam ser o proletário. Precisam provar a pureza de seu sentimento ideológico com a estupidez de sua produção “artística”.
Nesse ambiente mental, os artistas são levados a produzir aquilo que é visualmente revoltante, chocante, para estar em sintonia com o mundo violento, injusto. Sem isso, o artista não consegue provar sua boa fé ideológica, teme ser visto como elitista, preconceituoso, reacionário. Tudo aquilo que é convencionalmente belo deve ser atacado, destruído.
Civilização, segundo Dalrymple, é a soma total daquelas atividades que permitem ao homem transcender a mera existência biológica e alcançar uma vida espiritual, mental, estética e material mais elevada. Restringir instintos básicos e apetites é fundamental nessa empreitada civilizatória. Fracassar nisso é liberar a besta dentro de nós, o que nos torna pior do que os animais, pois temos a capacidade de agir diferente, de forma mais refinada, civilizada.
A paixão pela destruição pode se alimentar de si mesma, em vez de ser também construtora, como acreditava o anarquista russo Bakunin. Uma vez que as forças destrutivas são liberadas, elas podem se tornar autônomas, sem propósito algum além da própria destruição. Destruir por destruir, algo que acaba arrastando uma legião de ressentidos. É um grito de angústia e desespero daqueles incapazes de apreciar o que existe de melhor no mundo.
Alguns dão vazão a este sentimento poderoso com máscaras no rosto e pedras nas mãos, outros com pincéis e canetas. A ignorância se revolta contra o conhecimento. O feio contra o belo. O inferior contra tudo aquilo que enxerga como superior, mais elevado. O próprio conceito de civilização precisa ser destruído ou relativizado: quem somos nós para saber o que é civilizado ou bárbaro? Civilização existe tanto quanto o monstro de Loch Ness ou o abominável Homem das Neves; um mito no qual apenas os ingênuos acreditam.
Ao mesmo tempo, todas as conquistas da civilização são tomadas como dadas, garantidas, como se sempre tivessem existido, e como se não corressem o menor risco de desaparecer. Nada precisa, então, ser preservado com nosso esforço, porque tudo vem de graça como um presente da Natureza. Infelizmente, parafraseando Burke, tudo que é necessário para o triunfo da barbárie é que os homens civilizados nada façam.
Vivemos, hoje, uma situação pior: os homens civilizados, em vez de nada fazer, têm ativamente colaborado com a destruição dos valores civilizados. Eles têm negado qualquer distinção entre o melhor e o pior, quase sempre preferindo o último. Eles têm rejeitado as grandes conquistas culturais em troca de diversões efêmeras e puro entretenimento vulgar. Eles têm tratado com estima qualquer sinal de comportamento depravado. Eles têm colaborado com o avanço da barbárie e a destruição da civilização. E vale lembrar que Roma não foi destruída em um só dia; foi obra de contínuos ataques, tanto de fora como de dentro.
“A fragilidade da civilização foi uma das grandes lições do século XX”. Assim Dalrymple começa o livro, logo no prefácio. Uma das observações feitas ao longo desses anos por Dalrymple é que o mal, para florescer, precisa apenas de ter suas barreiras derrubadas. Sua vida matou nele a tentação de crer em uma bondade fundamental do homem, ou que a maldade é algo excepcional ou estranho à sua natureza. Basta ver o que o povo alemão, teoricamente civilizado, foi capaz de fazer, com a cumplicidade de muitos.
Retirar a responsabilidade individual dos atos dos indivíduos, eis uma das barreiras mais importantes que acabou enfraquecida ou derrubada no mundo moderno. As teorias que transformam todo criminoso em vítima de forças maiores, da “sociedade”, ou o relativismo moral que proíbe julgamentos objetivos, isso contribuiu sobremaneira com o avanço do mal nas sociedades ditas civilizadas, como a própria Inglaterra. Um médico ou um intelectual, atentos a essa realidade, deveriam responsabilizar os indivíduos, em vez de pretender possuir alguma cura objetiva de fora, além de sua (do indivíduo) própria moral.
Isso, para Dalrymple, é a frivolidade do mal, mais até do que a banalidade, como disse Hannah Arendt: colocar o próprio prazer pessoal acima da miséria de longo prazo causada naqueles com quem você tem um dever. O médico ou o intelectual que sentem regozijo por posar como “salvadores da pátria”, como os engenheiros sociais, os burocratas ungidos capazes de consertar os males sociais de cima para baixo, esses são cúmplices da escalada do mal.
O próprio estado de bem-estar social, ao retirar a responsabilidade dos indivíduos e colocar o estado no papel de pai dos outros, acaba contribuindo para esse caos social, com pais que abandonam seus filhos e suas mulheres, com gente que não assume as rédeas da própria vida pois sabe que há “alguém” para fazê-lo em seu lugar. O paternalismo cria uma legião de “crianças” mimadas, petulantes, que demandam mais e mais e nunca aceitam se implicar em seus problemas.
Mas como reconhece Dalrymple, o “welfare state” pode ser uma condição necessária, mas não é suficiente para explicar o mal da atualidade. É aqui que entra o campo das ideias, da cultura, tema predominante em seus livros. Não basta esses indivíduos terem incentivos econômicos para agir assim; é preciso ter o estímulo moral. Isso vem da visão moderna que enaltece o egoísmo, que oferece uma desculpa moral para a irresponsabilidade individual.
Dalrymple atendeu milhares de pacientes com vidas destroçadas, problemas com drogas, maridos ou namoradas que batem nas suas mulheres, filhos com vários parceiros diferentes, e em quase todos os casos ele era claramente capaz de identificar o reconhecimento da própria escolha nessas tragédias, apesar do gozo no discurso de vítima. Consolar essas pessoas jogando para ombros alheios o fardo de seus erros pode ser prazeroso, mas é desumano.
“Ninguém é melhor do que ninguém”, “quem somos nós para julgar o outro?”, “ele é apenas humano”, “não existe certo ou errado”, “não devemos ser preconceituosos” e por aí vai, tudo criando o clima perfeito para o indivíduo fugir de sua culpa em sua própria miséria, para ignorar sua responsabilidade em suas escolhas equivocadas. A amoralidade se tornou a forma superior de “moralidade”. Não tem como dar certo. A civilização é uma escolha. Infelizmente, muitos intelectuais escolhem a barbárie.
Ao dissecar essa crise de valores, um dos sintomas apontados por Dalrymple é o excesso de sentimentalismo na atualidade, quando as pessoas confundem liberdade com deixar todas as suas emoções tomarem conta de suas ações, sem nenhum tipo de freio.
Ele cita como exemplo a celeuma com a morte da princesa Diana, o sensacionalismo que tomou conta da imprensa, e a pressão popular para que a rainha expressasse publicamente algum sofrimento mais forte. Logo a família real, conhecida por não demonstrar em público fortes emoções, por ser contida, discreta e reservada. Como resume Dalrymple, os britânicos modernos imaginam que a resposta para a constipação é a diarreia. De um extremo ao outro, não há lugar para nenhum meio termo.
Em seguida, Dalrymple visita Shakespeare, em especial Macbeth, para nos lembrar da importância dos freios aos apetites humanos. O bardo nos esfrega na cara a realidade de que não existem consertos técnicos para a humanidade, algum tipo de panaceia capaz de nos livrar de nosso “pecado original”, de nossa natureza humana suscetível às paixões (no caso de Macbeth, a ambição).
O mal, em outras palavras, estará sempre à espreita, dentro de nós, pronto para ser despertado quando a vigília cai em sonolência. A linha divisória nem sempre é clara, e Shakespeare argumenta que todos nós somos, em potencial, agentes do mal, pois ele habita nossos corações. Praticar o bem não seria tanto uma questão de conhecimento, como pensava Platão, e sim de escolha moral, de um contínuo exercício de controlar nossos apetites mais básicos e “instintivos”.
O que Shakespeare destrói, portanto, é a utopia de que bastam novos arranjos sociais para eliminar o mal do mundo. O conceito de “pecado original” seria antagônico a esta visão otimista e ingênua. A tentação do mal será parte de nossas vidas como seres humanos imperfeitos. A busca da perfeição por meio da manipulação do ambiente estará sempre fadada ao fracasso, a despeito do que pensam os “engenheiros sociais”.
O autocontrole e o limite de nossos apetites são fundamentais nessa batalha eterna contra o mal, e dependem, em última instância, de cada indivíduo. Claro que as características do ambiente podem influenciar, ajudar ou atrapalhar esta luta contínua, mas não determinam seu resultado.
A lição, segundo Dalrymple, é que fortes emoções ou desejos, por mais que virtuosos em certas ocasiões, podem ser usados para maus propósitos se escaparem do controle ético. Shakespeare não era um defensor da ideia do bom selvagem que dá vazão às suas emoções e seus instintos apenas. Ao contrário: ele temia essa besta presente nos homens.
Em outras palavras, as restrições às nossas inclinações naturais, que se deixadas livres e soltas não levam automaticamente à prática do bem e com frequência nos levam à prática do mal, são uma condição necessária e indispensável para a existência civilizada da humanidade.
Pela ótica de Dalrymple, Shakespeare estaria entre os totalitários utópicos e os libertários fundamentalistas. Ele não nos oferecia resposta fácil para o dilema humano. Sua resposta não era nem a repressão severa e draconiana, nem a total leniência e permissividade, extremos defendidos por aqueles que caem na tentação de argumentar com princípios absolutos válidos inquestionável e invariavelmente. Há que se buscar uma proporção entre ambos, o que nos torna humanos.
Prudência, especialmente contra os modismos intelectuais; cautela, principalmente com experimentos sociais jamais testados; autocontrole, para não deixar nossos apetites tomarem conta de nossas ações; e mais respeito às tradições e, acima de tudo, às limitações do animal homem: eis algumas das fundamentais mensagens de Theodore Dalrymple.
Quando olhamos para o Brasil de hoje, com uma total degradação de valores estéticos e morais, com tudo que é porcaria sendo elogiada pelos “formadores de opinião”, com a periferia completamente arrasada pelo lixo ideológico vendido por elites culpadas ou oportunistas, fica mais fácil entender por que ler Dalrymple não é apenas importante; é necessário!
Rodrigo Constantino
Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/nossa-cultura-ou-o-que-restou-dela-convite-para-palestra-sobre-dalrymple
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