A arte pode transcender a morte, ainda que incapaz de impedir a separação física entre o criador e seu objeto de inspiração. Durante anos, o fotógrafo Robert Mapplethorpe e a cantora Patti Smith mantiveram essa relação de artista e musa, seja como amantes ou apenas parceiros de trabalho; uma comunhão que duraria até 1989, quando Mapplethorpe perdeu sua luta contra a Aids, dois anos e meio após ter sido diagnosticado com a doença. Pouco antes de morrer, ouviu de Patti a promessa de que um dia ela escreveria a história dos dois; lembranças que foram registradas no livro “Só Garotos” (Companhia das Letras).
A partir das anotações de seu diário, Patti recorda o período vivido em Chicago, onde nasceu e de onde partiu, aos 20 anos, rumo a Nova York, deixando para trás família, estudos e um filho, fruto de uma gravidez indesejada. Inspirada por Joana d’Arc, Bob Dylan, Rimbaud e Baudelaire, a aspirante a escritora chegou à Grande Maçã em 1967, onde arranjou emprego numa livraria. Lá, conheceria Robert, um artista plástico em início de carreira. Encontraram-se pela segunda vez quase por acaso, quando Robert salvou Patti de um apuro no meio da rua. Logo se apaixonariam e viveriam sob o mesmo teto, compartilhando discos, livros e influenciando mutuamente suas criações.
Porém, nem tudo seria tranquilo nessa convivência. Sem conseguir vislumbrar um futuro nas artes e sem emprego fixo, a frustração de Robert só aumentava. Patti também teria de lidar com o processo de descoberta da homossexualidade de seu companheiro, que para ajudar a pagar as contas passou a exercer a atividade de michê. Após um breve período separado, o casal, em busca de inspiração e ascensão, se mudaria para o hotel Chelsea, um lugar, segundo Patti, frequentado por “poetas viciados, dramaturgos, cineastas falidos e atores franceses”.
Em 1968, Patti ouviria seu primeiro chamado à música, durante um show do The Doors. No Chelsea, ainda teria contato com Jimi Hendrix, Jefferson Airplane e Johnny Winter. Porém, o encontro mais marcante seria com seu herói Bob Dylan – ou melhor, com o alter-ego do músico, Bobby Neuwirth –, um dos que mais a incentivaram a transformar seus poemas em versos musicais e que a apresentou, em junho de 1970, a Janis Joplin (pra quem escreveu uma canção, nunca gravada, já que a intérprete de “Piece Of My Heart” morreria alguns meses depois).
A jovem artista também conheceria nomes influentes da literatura, como os ícones beat William Burroughs e Allen Ginsberg (que a confundiu com um “menino bonito”), e das artes plásticas e dramáticas, em especial os habitués do restaurante Max's Kansas City, um dos pontos descolados de Nova York na época, onde Robert acreditava que poderiam se inserir mais facilmente no círculo de Andy Warhol, expoente da pop art e um dos frequentadores vip do local.
Após algumas leituras públicas com o suporte do guitarrista Lenny Kaye – em que fundiam poesia e rock and roll – e elogiadas atuações no teatro, Patti se sentiria mais à vontade para cantar suas composições, e logo formaria uma banda com o próprio Lenny mais o pianista Richard Sohl. Com esse line-up, e contando com a ajuda de Tom Verlaine (Television) na segunda guitarra, gravariam o primeiro compacto no lendário Electric Lady Studios, de Jimi Hendrix.
“Temíamos que [o rock] perdesse seu propósito, que caísse em mãos aburguesadas, que patinasse no lodo do espetáculo, das finanças e da complexidade técnica insossa. (...) Nós pegaríamos em armas, as armas da nossa geração, a guitarra elétrica e o microfone”, idealizava Patti, antecipando a estética punk com o álbum “Horses”, de 1975.
Nessa época, Patti e Robert já não eram mais um casal, porém a admiração e a colaboração artística entre ambos permaneceram. Subsidiado pelo namorado – o mecenas e colecionador de arte Sam Wagstaff –, Robert pôde se aprofundar em seu trabalho com a fotografia, vindo a produzir algumas das fotos dos primeiros discos da cantora e ganhando notoriedade ao retratar desde famosos até o universo sadomasoquista/gay. Patti, por sua vez, após relacionamentos com o dramaturgo Sam Shepard e com o tecladista Allen Lanier, do Blue Öyster Cult, se casaria com Fred “Sonic” Smith, ex-guitarrista do MC-5.
A despeito de toda a agitação do período em que os dois protagonistas viveram juntos, “Só Garotos” não é um livro alegre, e dificilmente seria de outra forma, dadas as circunstâncias que levaram Patti a escrevê-lo. “Eu, destinada a viver, ouvindo atentamente um silêncio que demoraria uma vida para expressar”. Robert, em seus últimos meses de vida, criaria a fundação que leva seu nome, com o intuito de promover a fotografia como arte e apoiar pesquisas de combate à Aids.
Fonte: Patti Smith: precursora do punk em autobiografia http://whiplash.net/materias/livros/168133-pattismith.html#ixzz2Cr8CG8cK
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